sexta-feira, 26 de agosto de 2011
PASTOR E AMIGO - POR MARK GALLI
Em entrevista exclusiva, Eugene Peterson destaca a importância dos relacionamentos no ministério.
Eugene Peterson, como qualquer pastor, já teve lá suas crises existenciais e ministeriais. A primeira foi no início de sua trajetória – achava o pastorado complicado e não sabia bem como atender às expectativas das pessoas. Depois, foi confrontado pela própria vocação. Preferia seguir pela vida acadêmica, mas em determinado momento, viu-se diante do púlpito. Também teve de aprender a lidar com as ovelhas, ou seja, como se relacionar com aqueles a quem liderava. Isso, sem falar nos problemas e angústias que os colegas de ministério vinham lhe confessar. Tudo isso fez de Peterson um “pastor de pastores”.
Mas ele é muito mais do que isso. Hoje, às portas dos 80 anos, é um pensador cristão respeitado, consultado e querido. Predicados intelectuais ele tem de sobra – escritor com mais de 30 títulos publicados, poeta e conferencista, é professor emérito de uma das referências do pensamento cristão mundial, o Regent College, no Canadá. Mas quem o ouve falar – como Mark Galli, diretor de redação da Christianity Today, seu amigo de longa data, que o entrevistou para CRISTIANISMO HOJE – percebe que está diante de um crente que deseja ser servo, não apenas de Deus, como dos irmãos.
CRISTIANISMO HOJE – O senhor dizia, no início de seu ministério, que o pastorado era complicado – ou, que talvez, o senhor mesmo o complicasse. E agora, depois de tantos anos, ainda pensa assim?
EUGENE PETERSON – Bem, se ouvirmos as expectativas de consumo das pessoas, o ministério fica complicado, pois elas tendem a impor o que querem. As pessoas estão acostumadas a poder escolher. Mas, uma vez que entendemos o que estamos fazendo, e para o quê o fazemos, tornamo-nos pastores mais locais, presentes – e aí, eu não diria que o ministério fica simples, e sim, não tão complicado. Aprendemos a estar presentes diante de tudo o que acontece na vida das pessoas e a não impor coisas a outras pessoas, muito menos deixar que as imponham sobre nós.
Em um de seus livros, o senhor usa outro adjetivo para designar o ministério do pastor: “Subversivo”. O que quis dizer com isso?
Eu quis dizer que as pessoas têm suas defesas. Se trouxermos a elas algo pesado demais, elas tendem a criar um bem desenvolvido sistema defensivo contra isso. Mas, trazendo as coisas obliquamente, sob o que às vezes chamo de “forma indireta”, temos maneiras de contornar essas defesas. Jesus fez isso o tempo todo com suas parábolas, que eram metáforas surpreendentes. Ele raramente usava palavras abstratas. O Senhor sempre teve muita identidade com a coisa local, com o estar presente no dia a dia, com o familiar. E então, dessa forma oblíqua e subversiva, podemos atrair a imaginação das pessoas para proporcionar-lhes algo que antes não tinham visto, notado ou pensado.
O senhor critica colegas que pregam o eu chama de “Cristo genérico”. Como então deve ser o anúncio do verdadeiro Cristo apresentado na Palavra de Deus?
O Cristo revelado é único. Sua encarnação está ligada ao que é visível – e, muitas vezes, ao inesperado. Jesus surpreendia as pessoas, na maioria das vezes, por não agir como Deus; ele não atendia à expectativa estereotipada dos outros acerca do que ele era, ou do que deveria fazer. A verdade é que as pessoas não olham para os evangelhos como deveriam. São quatro os escritores dos evangelhos. Todos contaram as coisas de modo um pouco diferente um do outro. Eles não seguiram um estereótipo, um sistema dogmático, no qual quisessem encaixar as coisas de forma forçada. Eles ouviram, viram e compreenderam Jesus no contexto em que viviam. Da mesma forma, devemos fazê-lo no contexto em que vivemos. Tudo tem a ver, essencialmente, com a tomada da revelação a sério, com a encarnação do Verbo.
Como o pastor pode manter limites apropriados entre o exercício de sua vocação e sua vida pessoal?
Essa palavra “limites” tem vindo à tona através das disciplinas psicológicas. Parece-me que é uma maneira de evitar a dificuldade, de contornar a ambiguidade. Você sempre sabe onde está, sempre conhece o limite, e deixa as pessoas virem até onde querem, mas não vai deixá-las ultrapassar essas fronteiras. Lembro que uma vez entrei no escritório da igreja e encontrei lá algumas mulheres que estavam fazendo um boletim informativo. Tínhamos, na ocasião, uma filha que estava nos dando alguns problemas extras, naquela fase de confrontar os pais. Então, eu fiz um desabafo, dizendo estar uma fera com isso e até que eu nem queria ser pai. Quando saí, uma daquelas irmãs me repreendeu, dizendo que todas ali já tinham problemas de sobra para manter as próprias vidas e famílias juntas. “Agora, teremos de ajudar você a manter sua vida em família? Isso é demais”, disse. E ela estava certa. Há algumas coisas totalmente inadequadas a um pastor, como se irritar ou se descontrolar. As pessoas simplesmente não entendem tal comportamento num ministro do Evangelho. A vida pastoral tem de ser uma vida relacional – quando você vive assim, não tem limites como tal. Você tem habilidades, intimidade. Aliás, não gosto dessa separação da vida pastoral e pessoal, atuação congregacional e formação profissional.
Quando fala em vida relacional, o senhor quer dizer que o pastor deve buscar construir amizades entre sua congregação?
Sim. Eu amo a passagem de João 13.17, em que Jesus está no Cenáculo, em sua última noite com os discípulos. Ali, ele os chama de amigos, e não de apóstolos ou discípulos, que são palavras que definem algo meramente funcional. Apenas amigos – e ele repete isso por três vezes. Os pastores deveriam meditar sobre isso. Em vez de se concentrarem em suas funções, suas técnicas, estratégias e visões, que relaxem. Basta apenas estar lá com as ovelhas, aprendendo a serem amigos. No momento em que o pastor sobe no pedestal, vai começar a ocultar a natureza do Evangelho.
A partir de que momento um pastor está subindo no pedestal?
Há muitos pastores que cultivam esse negócio de estar em um pedestal, porque, assim, eles não têm que lidar com pessoas. Preferem lidar com as ovelhas apenas no papel de pregador, conselheiro, guia espiritual ou qualquer outra coisa. Há muitas maneiras de se conviver com a forma estereotipada dessa relação. Mas, quando você se torna um amigo, a coisa é outra. Quando saí da Christ our King Chruch [Igreja Presbiteriana Cristo Nosso Rei, fundada por Peterson em 1962, em Maryland], onde estive por 30 anos, eu realmente não me preocupava com o estilo de vida daquelas pessoas – e, para dizer a verdade, eu não tinha amigos que eu chamaria realmente de “amigos”. Mas, quando eu saí, não posso lhe dizer quantas pessoas de lá me disseram que eu era o melhor amigo que já tiveram. Agora, eu era amigo em outro sentido, já que, de alguma forma, houve alguma qualidade na relação que transmitia que eu me preocupava com eles, conhecia os seus nomes, sabia os nomes de seus filhos – ou seja, não era apenas aquela coisa social. Muitas vezes, convidávamos pessoas para um jantar porque estavam com problemas, mas eu não tinha um relacionamento de amizade com muitas dessas pessoas; simplesmente era amigo porque era disponível para elas. É assim que eu acho que um pastor deve ser.
Ultimamente, com a disseminação dos chamados ministérios de tempo integral, tem havido profissionalização de diversas funções eclesiásticas, inclusive as de pastor e obreiro. Qual sua opinião sobre isso?
Eu acho que o profissionalismo na vocação pastoral é mortal, porque isso afeta a todos. Nós compartilhamos algo bem básico com nossas congregações. Estamos compartilhando a vida de Cristo, maneiras como seguir a Cristo. Os pastores devemos tratar os leigos com dignidade e honrar o seu trabalho, tanto como eles honram o nosso, e aceitá-los como iguais em termos de serviço no Reino de Deus e na vivência da vida cristã. Contudo, o profissionalismo que permeia nossas igrejas não confia nos leigos. Hoje, contratamos profissionais para fazer tudo. Em vez de confiar nos irmãos para fazer o trabalho do povo de Deus, contratamos alguém para fazê-lo, e é assim que profissionaliza tudo na estrutura eclesial. Desenvolvemos hierarquias e sistemas hierárquicos na igreja, e isso sutilmente elimina o senso maior de comunidade. Eu diria que a melhor maneira de superar o profissionalismo é confiar. O pastor deve aprender a confiar aos leigos a responsabilidade de serem iguais a ele em termos de status no reino de Deus.
Mas muitos líderes se queixam de escassez de voluntários para desempenhar funções na igreja...
Sim, isso tem acontecido. Se algo tem de ser feito por profissionais na igreja, tudo bem. Mas é uma realidade que pode ser mudada. Eu fiz isso por anos e anos; não reproduzi quase nada que os outros pastores fazem hoje pensando que é trabalho pastoral. Nunca tive uma equipe de profissionais atuando na igreja, nem mesmo uma secretária; a maioria dos trabalhos administrativos da congregação foram tocados por leigos. E as pessoas adoraram colaborar. Naturalmente, não podemos fazer as coisas sempre do mesmo jeito, mas eu acho que os pastores têm de cultivar um laicato em que confiem. Uma igreja forte não é aquela que, necessariamente, tem um pastor forte, mas sim, um laicato forte. Pena que haja muito pouco disso na igreja americana nestes dias.
Como as igrejas devem lidar com o próprio crescimento?
Nós não podemos definir um limite arbitrário para o tamanho da igreja. Tudo é determinado pela maneira como você planeja sua igreja. Quinhentos membros, por exemplo, me parece ser a quantidade certa. Nós construímos nossa igreja para acomodar cerca de trezentas pessoas, e em dois cultos, o que daria conta de todos. E isso funcionou. Meu filho é pastor de uma igreja nova, e, quando a comunidade chegou perto dos 300 membros, eles compraram uma propriedade enorme num local onde havia poucas igrejas. Agora, eles estão se preparando para construir um novo templo. Se construímos um galpão, teremos um depósito cheio de pessoas. Mas, se erguemos um santuário, teremos um lugar de culto e adoração que não pode ser em um galpão.
Poucos pastores usam as línguas originais e a exegese, além de uma boa hermenêutica, na preparação de seus sermões. No Brasil, em particular, boa parte dos pregadores têm insistido na necessidade de mobilizar o público com uma “mensagem arrebatadora”. Aquele tipo de pregação mais consistente está em declínio?
O modelo da pregação preparada teologicamente, com atenção às línguas bíblicas originais, está, sim, em declínio. E fico um pouco desanimado com isso. Talvez, no Brasil, a coisa seja ainda pior do que aqui. O estilo de pregador “animador de auditório”, de fato, é muito ruim. Ora, falar com voz impostada ou dar um show no púlpito não são elementos de exegese. Quando você entra em um consultório médico e algo está errado com sua saúde, você não espera que o médico grite ou leia o diagnóstico em voz alta para que o aceite logo. Então, para quê decibéis a mais na pregação?
O senhor é professor por formação e vocação e docente emérito do Regent College. Como vê o cenário da educação teológica e o que acha que há de melhor e de pior no ensino cristão hoje?
O melhor que está acontecendo – e falo aqui da América – é, provavelmente, o povo. As pessoas que estão entrando no seminárioestão mais maduras, e muitos novos obreiros chegam ao pastorado na meia-idade. Ou seja, viveram boa parte da vida em outras atividades, e percebem que ainda há algo a fazer nos anos que lhes restam – algo que faça diferença para elas e para as outras pessoas. Eu tenho um amigo que é executivo de publicidade em um escritório de Nova Iorque. Ele decidiu, por volta dos 45 anos de idade, que queria ser um pastor. Então, estudou teologia no seminário e, depois de alguns anos, foi ordenado. Ele diz que deixou de ganhar quatrocentos mil dólares por ano, contando mentiras algumas vezes, para receber cinquenta mil dizendo a verdade. Da mesma forma, muitos estão fazendo isso. É gente que está preparada para assumir grandes cortes de rendimento para fazer algo realmente significativo.
E o que há de pior?
A perda de identidade do ensino teológico. Os seminários estão tendo que adaptar seus currículos para cumprirem as exigências das associações de escolas teológicas e terem seus cursos reconhecidos. Ora, qualquer coisa imposta de fora é muito inadequada. Assim, os estudantes estão tendo que ler muito mais do que podem absorver. Então, as escolas teológicas não podem desenvolver o que sua denominação precisa ou mesmo uma estratégica e currículo próprios para lidar com os alunos que espera atrair. Vi isso acontecer na Regent e era totalmente irritante ter de pedir aos alunos que lessem coisas que não exigíamos a princípio. Enquanto isso, outras matérias importantes, como teologia, espiritualidade e história, acabam ficando em segundo plano por falta absoluta de tempo e capacidade dos alunos para absorver tanta coisa. Eu acho as imposições feitas em nome da validação dos diplomas uma coisa muito difícil de lidar.
Por que a teologia espiritual, que foca menos na especulação intelectual e mais na integração do conhecimento na vida cristã do dia a dia, está perdendo espaço?
É um enigma para mim saber por que isso acontece. Teologia espiritual não é apenas uma especialização, ou parte sem importância da teologia. É teologia vivida! Como o seminário cria um currículo teológico e consegue dar-lhe importância e sentido, sem que o aluno possa saber a verdade e passar o resto da vida sem vivê-la? O conhecimento do Evangelho e das Escrituras deve ser enfatizado e é importante, mas isso não pode ser divorciado na nossa maneira de viver ou não viver. Algumas situações vão a extremos e acabam por evitar o real encontro do aluno com Deus – a vida religiosa é uma das melhores maneiras de fazer isso. E o estudo da teologia pode dar essa falsa sensação de que podemos nos enganar pensando que temos, de fato, um encontro com Deus, quando, na verdade, estamos mesmo é precisando daquilo que pregamos. Tivemos um professor de grego e hebraico com cerca de 40 anos idade que também ensinava isso de maneira sutil. E havia mais do que eu chamaria de teologia espiritual acontecendo em seus cursos do que na maioria dos outros, simplesmente porque tudo isso era vivido por ele. Ele fez os idiomas bíblicos ganharem vida, mas também fez as Escrituras ganharem significado e sentido não apenas com a sua forma peculiar de ensinar, mas pela maneira como ele as vivia diante de todos, trabalhando com as pessoas.
No Brasil, praticamente todos os recursos teológicos, inclusive os livros disponíveis, são de origem estrangeira, principalmente dos EUA. Em sua opinião, quão importante é uma teologia com produção nacional em um país que está crescendo em importância, não só no contexto geopolítico, mas como uma potência evangélica mundial? Que tipo de influência os conhecimentos teológicos enraizados na realidade local podem ter?
É importante que os brasileiros e outros povos possam investir e desenvolver estudiosos locais, gente que viva e conheça a própria cultura. Mas em alguns aspectos, o Evangelho não é étnico. No entanto, todos podemos contribuir teologicamente uns com os outros. E todos nós somos parte da Igreja e num mundo muito cosmopolita. Então, ainda que não haja produção teológica suficiente no Brasil, minha sugestão é que se tente manter o desenvolvimento de uma teologia local. A tradução de The message [de sua autoria] está saindo agora em português. Mas eu não fiquei entusiasmado com ela, a princípio. Parecia-me que The message funcionava bem aqui nos EUA porque foi feito por alguém que é um americano, conhece o idioma americano e a cultura do país. Mas, cada linguagem tem sua forma coloquial, e nós procuramos encontrar brasileiros que conheciam bem o grego e o hebraico, além do português falado no Brasil, para obter um equivalente adequado em A mensagem.
O senhor é considerado pastor de pastores. No momento em que os pastores são muito questionados, inclusive por protagonizarem escândalos que repercutem na mídia e estereotipam a Igreja, cada vez mais crentes evitam ser chamados de evangélicos. O que fazer para contornar essa situação?
Acho que primeiro devemos estar conscientes e lidar com o fato de que ser pastor é uma modesta e humilde vocação, e não tem nada a ver com ganhar os aplausos do mundo. E, se não estamos dispostos a aceitar como colegas pessoas que são pecadores – por vezes, flagrante pecadores –, não temos muito o que fazer neste ramo de trabalho. Os escândalos são indesejáveis, muito tristes. Mas isso é parte do que significa viver em uma igreja, e eu não penso que nós possamos lavar nossas mãos desse tipo de coisa e tentar encontrar um lugar melhor que a igreja. Temos é que purificá-la, a fim de que seja um exemplo para o mundo. A Igreja é uma luz que brilha.
A pós-modernidade e os apelos da secularização têm levado muitos cristãos a deixar a igreja. Como atraí-las de volta?
Eu não fico encantado com certas estratégias para reconquistar as pessoas que um dia deixaram a igreja. E acho que muitas das pessoas que a deixam fazem-nos por boas razões, mas não estão indo para algum lugar melhor... Minha esperança é de que vão descobrir que, se há algo melhor, é o que eles deixaram para trás. Mas leva tempo para isso acontecer. Eu tenho alguns amigos pastores que estão vivendo um Evangelho vibrante em nações secularizadas como Alemanha, França ou Escócia. Nós estamos vivendo em um tempo muito difícil, e em alguns aspectos sem precedentes. Contudo, tentar reformular ou refazer o Evangelho para fazê-lo mais atraente é um equívoco. É claro que as coisas não estão indo bem. Nós estamos vivendo um momento muito difícil, e, em alguns aspectos, sem precedentes – mas Barth, que viveu em tempo semelhante, disse que somente onde há sepultura, pode haver ressurreição. Porém, precisamos fazer o melhor, nos mantendo fiéis, ainda que sejamos desprezados por sermos sal e fermento para o mundo – sabendo que apenas fazemos nosso trabalho como seguidores de Jesus. E isso não é um trabalho fascinante.
"Como pastores devemos tratar os leigos com dignidade e honrar o seu trabalho, tanto como eles honram o nosso."
Uma esquerda religiosa e sem esperança - Filipe Samuel Nunes em Gospelprime
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