terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A ORIGEM DAS ESPÉCIES SEGUNDO AGOSTINHO - POR ALISTER McGRATH


Para o bispo de Hipona, o relato bíblico da Criação expressa a potencialidade dinâmica da obra divina.
No ano que marca o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e os 150 anos da publicação de seu célebre livro A origem das espécies, muitos debates acerca da obra do naturalista britânico têm ganhado corpo. Para inúmeros estudiosos, o darwinismo, baseado na concepção da aleatoriedade do surgimento da vida e em sua capacidade de evoluir, eleva-se da categoria de simples teoria científica para uma verdadeira visão de mundo, forma de ver a realidade que exclui Deus permanentemente. Já outros reagem fortemente contra os apologistas do secularismo. O ateísmo, eles argumentam, tem usado teorias científicas como armas em sua guerra contra a religião. Eles também temem que as interpretações bíblicas estejam se adaptando às teorias científicas modernas. Certamente, dizem, a Criação narrada em Gênesis deve ser interpretada literalmente, como um relato histórico do que realmente aconteceu. Por outro lado, muitos evangélicos de hoje temem que os modernistas abandonem a longa tradição de uma exegese bíblica fiel. Eles dizem que a Igreja sempre tratou o relato da Criação como uma história clara do surgimento das coisas. Entre os dois extremos, a autoridade das Escrituras parece estar em jogo.

O aniversário de Darwin é um convite a olhar o assunto em perspectiva. Afinal de contas, desde que ele formulou suas teses após a épica viagem a bordo do navio Beagle, muita coisa mudou – no entanto, o evolucionismo continua sendo a tese mais universalmente aceita para explicar o surgimento da vida no planeta. E o relato bíblico da Criação, que durante séculos a fio embasou qualquer estudo acerca do tema, tem sido constantemente posto em xeque não apenas pela modernidade, mas por muitos estudiosos cristãos, que enxergam ali muito mais um compêndio religioso do que uma narrativa confiável. Na história da Igreja, o assunto sempre suscitou controvérsia, e a mera aceitação da literalidade bíblica em relação às origens sempre foi questionada. O teólogo, professor e bispo Agostinho de Hipona (354-430), embora tenha interpretado a Escritura mil anos antes da Revolução Científica, não tinha problemas em relação às controvérsias sobre as origens. O mais marcante em sua trajetória é que ele não comprometeu a interpretação bíblica para acomodá-la às teorias vigentes em seu tempo. Para Agostinho, o mais importante era deixar a Bíblia falar por si mesma.

Há pelo menos quatro pontos nos seus escritos em que tenta desenvolver um relato sistemático de como aquela passagem deve ser entendida – e cada um é sutilmente diferente um do outro. Em O significado literal de Gênesis, comentário escrito durante quatorze anos no início do século 5, Agostinho deixa clara sua crença de que Deus trouxe todas as coisas à existência em um só momento, ainda que a ordem criada não seja estática. Ou seja, o Criador teria dotado as criaturas com capacidade de desenvolvimento, como uma semente, cuja vida está contida em si, mas só se desenvolve e cresce no momento certo. Usando uma linguagem mais técnica, Agostinho incita seus leitores a pensar sobre a ordem criada como algo que contém casualidades divinas ocultas que só emergirão futuramente. É que até aquele momento o bispo não tinha noção de acaso ou de mudanças arbitrárias na obra divina. O desenvolvimento da Criação está sempre sujeito à soberana providência de Deus, que não apenas cria a semente, como direciona o tempo e o lugar do seu crescimento.

Agostinho argumenta que o primeiro relato sobre a Criação não pode ser interpretado isoladamente, mas deve ser entendido ao longo da segunda parte, descrita em Gênesis 2.4-25, e também por qualquer outra narração sobre o tema nas Escrituras. Por exemplo, ele sugere que o Salmo 33.6-9 – cujo resumo é “Pois ele falou, e tudo se fez” – menciona a origem instantânea do mundo através da palavra criadora de Deus, enquanto o texto de João 5.17 (onde Jesus diz “meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também”) aponta que o Senhor ainda está agindo na Criação. Além disso, ele enfatiza que uma leitura detalhada dos primeiros textos bíblicos aponta que os seis dias da Criação não são períodos cronológicos delimitados, e sim, uma forma de categorizar o trabalho criador de Deus. Em síntese, Agostinho cria que o Senhor criou o mundo em um instante a partir de sua vontade, mas continua a moldá-lo, mesmo hoje em dia.

O bispo de Hipona estava preocupado de que os intérpretes estivessem fechados às novidades cientificas quando liam a Bíblia, fato que gerou conflitos mais de dez séculos depois, quando Copérnico desafiou a crença tradicional de que o Sol é que girava em torno da Terra, e não o contrário. O detalhe é que, em pleno século 16, a Igreja interpretou a teoria heliocêntrica como um desafio para a autoridade da Bíblia. Não era, com certeza, e constituiu-se em mais um desafio para que se interpretasse a Palavra de Deus de maneira mais ampla – uma interpretação com urgente e constante necessidade de revisão. Já no seu tempo, Agostinho preconizava que algumas passagens bíblicas estão abertas para diversas interpretações e não devem se casar com as predominantes teorias científicas. Por outro lado, a Bíblia se torna prisioneira do que um dia foi considerado uma verdade cientifica: em assuntos tão obscuros e distantes da nossa visão, nós encontramos nas Sagradas Escrituras passagens que podem ter várias interpretações sem que a fé que um dia recebemos seja prejudicada.

Essa aproximação de Agostinho fez com que teólogos não caíssem numa visão pré-científica do mundo, e o ajudou a não se comprometer em face das pressões culturais, que eram enormes. Por exemplo, muitos pensadores contemporâneos consideraram incoerente a visão cristã sobre a criação ex nihilo (do nada). Cláudio Galeno, médico do então imperador romano Marco Aurélio, por exemplo, rejeitou isso como uma lógica e metafísica absurda. Agostinho argumenta também que o tempo faz parte da ordem criada. Ou seja, no seu entender Deus criou espaço e tempo juntos, e este último só existe dentro do universo criado. Para alguns, porém, a ideia de que o tempo tenha sido criado parece ridícula.

Novamente aqui, Agostinho se opõe à ideia de que a narrativa bíblica não pode ter interpretações alternativas. Assim, o tempo deve ser visto como uma das criaturas e servos de Deus; por outro lado, a infinidade é uma característica essencial da eternidade. Mas a esta altura surge uma dúvida essencial: então, o que Deus estava fazendo antes da criação do universo? Para o teólogo, o Senhor não trouxe a criação à existência num momento especifico, pois o tempo não existia antes da Criação. Interessante, pois é exatamente esse o estado da existência, o chamado Caos, que muitos cientistas defendem ter havido antes do hipotético Big Bang, a gigantesca explosão que, há mais de 13 bilhões de anos, teria dado origem ao universo.

Agostinho poderia até estar errado ao afirmar quer a Escritura ensina claramente que a Criação foi instantânea. Os evangélicos creem, apesar de tudo, na infalibilidade da Escritura, não na infalibilidade das interpretações. Como alguns nos lembram, o próprio Agostinho não era constante nas suas convicções acerca das origens. Outras posições certamente existem – por exemplo, a ideia de que os seis dias de Criação, mencionados no Gênesis, foram seis períodos de 24 horas, ou a tese de que eles representam, na verdade, seis extensos períodos, cada um deles com seus milhões de anos. Todavia, a posição de Agostinho nos obriga a refletir sobre essas questões, mesmo que achemos que ele estava errado – e aí está um dos motivos da relevância de seu legado.

Afinal de contas, quais são as implicações dessa antiga interpretação bíblica sobre as afirmações de Darwin? Primeiro, Agostinho não limita os atos de criação à Criação inicial. Deus ainda está, ele insiste, trabalhando com o mundo, direcionando seu continuo desenvolvimento e expandindo seu potencial. Para ele, há dois “momentos” na Criação: aquele primordial e um contínuo processo de direcionamento. Logo, a Criação não é um instante circunscrito ao passado remoto. O Senhor continua trabalhando no presente, ele escreve, sustentando e direcionando o sucessivo desabrochar das gerações. Esse duplo foco sobre a Criação permite ler Gênesis de uma forma que afirma que Deus criou todas as coisas do nada. Porém, isso também nos permite afirmar que o universo foi criado com a capacidade de evoluir, sob a soberana direção de Deus – dessa forma, o primeiro estágio da Criação não corresponde ao que vemos agora.

Para Agostinho, o Senhor criou um universo deliberadamente designado para se desenvolver e evoluir. E o plano para essa evolução não é arbitrário, mas programado na estrutura de tudo quanto foi criado. Os primeiros escritores cristãos tomaram nota de como o primeiro relato do Gênesis falava sobre a terra e a água dando origem à vida. Eles diziam que isso mostra como Deus dotou a ordem natural com a capacidade de gerar criaturas. Agostinho foi ainda mais longe: ele sustentava que Deus criou o mundo com uma série de poderes adormecidos, que são consumados em um certo momento, de acordo com a divina providência. Uma das evidências disso seria o texto de Gênesis 1.12, que sugere que a terra recebeu o poder de produzir vida por si mesma. A imagem da semente, ali mencionada, sugere que a Criação original contém em si mesma o potencial de fazer emergir todos os subsequentes tipos de vida. Isso não significa que Deus criou o mundo incompleto e imperfeito, como pretendia Darwin ao enfatizar a necessidade da evolução; esse processo de desenvolvimento, Agostinho declara, é governado por leis fundamentais, que revelam a vontade do Criador: “Deus estabeleceu leis fixas que governam a produção das espécies de seres, e os tira do esconderijo para serem vistos completamente”, diz em seu comentário.

Por outro lado, enquanto alguns podem entender a Criação como Deus inserindo novos tipos de plantas e animais num mundo já existente, Agostinho considera isso uma incoerência com o resto das Escrituras. Antes, o Senhor deve ser visto como o criador, naquele primeiro momento, da potencialidade de todas as coisas vivas que iriam surgir depois, incluindo a humanidade. Isso significa que o primeiro relato das Sagradas Escrituras descreve o instantâneo surgimento da matéria primitiva, incluindo os recursos para o desenvolvimento futuro. O segundo relato explora como essas possibilidades casuais surgiram e se desenvolveram na terra. Na visão agostiniana, esses dois relatos sobre a Criação revelam que Deus criou o mundo instantaneamente, enquanto imaginava que as outras espécies de vida iriam aparecer gradualmente durante os tempos.

Em posição diametralmente oposta à de Charles Darwin, Agostinho rejeitaria qualquer idéia do desenvolvimento do Universo como um processo aleatório e desprovido de leis. Por isso, ele teria se oposto à visão darwinista de variação casual, insistindo que a providência de Deus está profundamente envolvida no desenvolvimento da vida. O processo pode ser imprevisível; casual, nunca. Previsivelmente, Agostinho aproxima o texto da pressuposição cultural prevalente da fixação das espécies, e não viu nisso algo que desafiasse seu pensamento sobre esse assunto – apesar de a maneira com a qual ele critica as autoridades contemporâneas e de sua própria experiência sugerir que, pelo menos nesse assunto, ele estaria aberto a correções mediante a luz de descobertas cientificas.

O significado literal de Gênesis realmente nos ajuda a lidar com as questões levantadas por Darwin? Vamos deixar claro que a obra de Agostinho não responde esses questionamentos; todavia, nos ajuda a ver que o real problema não é a autoridade bíblica, mas sua interpretação. Além disso, ele oferece uma maneira clássica de pensamento que ilumina muitos debates ainda hoje, quase 1,6 mil anos após sua morte. Nesse assunto, Agostinho nem é liberal nem acomodado; mas totalmente bíblico, tanto no sentido quanto na intenção. Nós precisamos de paciência, generosidade e graça para refletir sobre essas grandes questões. E Agostinho pode nos ajudar a começar.



O ex-ateu Alister McGrath é professor de teologia histórica da Universidade de Oxford e pesquisador sênior do Harris Manchester College, no Reino Unido. Possui doutorados em biofísica molecular e em teologia pela Universidade de Oxford.

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