Como um pai distante e hostil me ensinou o mais profundo significado da misericórdia.
Fazia dez anos que eu não via meu pai. Eu não tinha fotos dele comigo; apenas uma vaga lembrança do seu rosto, fruto de nosso último encontro. Quando eu e meu marido paramos o carro em frente ao prédio em que morava, numa cidadezinha da Flórida, vi um homem de pele escura, quase careca. Era ele. Estava exatamente como eu me lembrava, embora uns 20 quilos mais gordo que da última vez em que o vi. “Como vou encenar isso?”, pensei. “Filha amorosa cumprimentando o pai sumido? Boa filha trazendo seus filhos para conhecerem o avô? Ou apenas uma filha ferida pela distância de seu pai?”
Saí devagar, prendendo a respiração. Meus filhos me seguiram, um atrás do outro. Meu pai continuou parado, como se não os estivesse vendo. Aqueles meninos eram irrelevantes para ele: nada sabia sobre eles e nunca os tinha visto, nem em fotos. Abracei de leve aquele homem estranho. “Como vai?”, ele perguntou, exibindo os dentes remanescentes. “Bem”, respondi. Nós tínhamos levado dois dias para chegar lá, desde Kodiak, no Alasca. Eram as férias de 2006 e queríamos vê-lo, quem sabe pela última vez. Aquela poderia ser a única oportunidade de meus filhos conhecerem o avô, já com 84 anos. Sugeri que saíssemos para tomar sorvete, pois sabia que ele gostava. Na sorveteria, ficamos sem assunto para conversar, observando o tráfego. Pouco antes de sairmos, pedi a meu marido que tirasse uma foto. Meu pai sentou-se e fiquei atrás, com os lábios tensos, contendo todo o vazio e a raiva que eu podia suportar. “Como posso perdoá-lo por todos os anos passados e até mesmo por este momento?”, eu me perguntava. Decidi que não voltaria para vê-lo de novo, não importava o que acontecesse.
Cinco anos depois, recebi um telefonema da minha irmã. Meu pai sofrera o que parecia ser um derrame e estava internado. Fiquei surpresa com a notícia, e mais surpresa ainda por saber que ela falava com ele, ultimamente, toda semana. Era o quarto dela que ele visitava à noite, quando estava em casa, enquanto nós, os cinco outros filhos, dormíamos. Só soubemos disso décadas depois. E esse não era o único mal que meu pai fazia a nós. Ele não conseguia ou não queria manter um emprego, o que nos levou a uma infância de muita pobreza. Quando eu tinha treze anos e minha mãe estava estudando para conseguir algum trabalho, meu pai pegou o pouco dinheiro que ainda tínhamos e foi-se embora em seu carro, pretendendo nunca mais voltar. Infelizmente, semanas depois, voltou. Anos mais tarde, quando finalmente juntou algum dinheiro, ele se mudou definitivamente para a Flórida, indo viver em um veleiro antigo.
“Por que você está fazendo isso?”, perguntei à minha irmã. “Eu o perdoei, Leslie”. Então, desliguei o telefone, sentindo todo o quarto rodar. Perdão sempre foi uma palavra por demais conhecida pelos cristãos, presente até na oração que Jesus nos ensinou. E o que dizer do mandamento que prescreve: “Honra teu pai e tua mãe”? Eu havia construído grande parte da minha vida com base nessa premissa. Só que não precisei procurar muito para encontrar outras pessoas lutando para perdoar um pai ou uma mãe, um padrasto, uma mãe adotiva, um avô – o tipo de pessoas que deveriam nos amar e cuidar de nós mas que, por muitas razões, não fizeram isso. É uma história antiga, que remonta aos tempos de Adão, Eva, Caim e Abel: pecadores criando pecadores. A iniquidade dos pais alcança os filhos até a terceira e quarta gerações, conforme as Escrituras.
As famílias estão desmoronando. Quase a metade dos filhos primogênitos que nascem nos Estados Unidos são, atualmente, de mães solteiras, e cerca de uma entre cinco crianças são criadas abaixo da linha de pobreza – e isso no Primeiro Mundo, que dirá da maior parte do planeta. Quarenta por cento dos primeiros casamentos não dão certo, fazendo as crianças passarem por crises e enfrentarem perdas em idades que não conseguem entendê-las. Jill Hubbard, psicóloga clínica do New Life Ministries (Ministérios Nova Vida) em Santa Monica, Califórnia, vê as consequências dos problemas familiares de maneira próxima e pessoal. “Pelo menos metade das pessoas que recebo toda semana está lutando, em algum nível, com a falta de perdão, especialmente em relação aos pais”, diz.
Libertação
Depois de seguir a difícil jornada para perdoar o meu pai, estou convencida de que todos devemos andar nesse mesmo caminho, se quisermos ser boas testemunhas do Senhor e fazer com que a igreja seja um refúgio em meio a uma sociedade ferida. E não só isso – variados estudos nos campos da medicina, da saúde mental e das ciências sociais afirmam o extraordinário poder do perdão na redução da pressão arterial, do estresse e da depressão. Perdoar também aumenta sentimentos como a compaixão e o otimismo, mesmo para os indivíduos mais traumatizados.
A mensagem do perdão tem se tornado cada vez mais difundida. Autores às centenas têm dito que perdoar é uma escolha, essencial para o nosso bem. O modelo de “perdão terapêutico” entrou no linguajar público como uma espécie de cura milagrosa e auto-administrada. “Eu perdoo por mim mesmo” é a máxima que tipifica a compreensão dominante acerca do perdão. O autor afirma: “Não se trata de perdoar pelo bem da outra pessoa. Trata-se de perdoar pelo seu próprio bem, para que você se liberte e siga em frente”. Mas os teólogos cristãos desempenham um papel importante na elaboração da mensagem terapêutica do perdão. Lewis B.Smedes, especialista em ética já falecido, foi um dos primeiros a lançar o perdão como um presente para nós mesmos: “Perdoar é libertar um prisioneiro e descobrir que esse prisioneiro era você”. Essa citação é tão usada que assumiu uma força de verdade do Evangelho.
Todas essas declarações, tanto de dentro quanto de fora da igreja, demonstram que não perdemos o conceito de perdão como bem moral. Mas temos limitado o bem para apenas nós mesmos, e é preocupante que o abandono de fundamento bíblico mais profundo do ato de perdoar tenha destruído o seu poder total e objetivo. Precisamos retornar aos mandamentos do Novo Testamento para perdoarmos como fomos perdoados. Isso resgata todo o projeto de perdão de suas piores formas de superioridade e egoísmo. Jesus usa a parábola do servo impiedoso para ilustrar a nossa verdadeira condição e necessidade. O perdão é para proporcionar liberdade e restauração a todos, especialmente àqueles que falharam conosco. Ele deve trazer a misericórdia de Deus entre nós, frágeis seres humanos, à espera da redenção em um mundo perdido.
Essa resposta correta ao perdão de Deus é tão séria e essencial para a vida cristã que Jesus adverte os discípulos, depois de ensinar a oração do Pai Nosso:
“Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos perdoará a vós;
Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas ofensas” (Mateus 6.14-15). O perdão de Deus não depende do nosso perdão a outras pessoas, e sua salvação não está vinculada a nenhuma ação de nossa parte. Ainda assim, é claro que ele requer que pessoas perdoadas também liberem perdão.
Bálsamo da misericórdia
Acreditar em tudo isso não fez com que perdoar meu pai fosse tarefa fácil ou imediata, é claro. Depois daquele telefonema de minha irmã, fiz várias viagens à Flórida durante um ano e meio. Na primeira, fui com as palavras do profeta Miquéias na cabeça: “Que é o que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça, e ames a benignidade, e andes humildemente com o teu Deus?”. Eu fui desejando amar a misericórdia, mas meu pai e eu entramos em confronto. Ele proclamou seu ateísmo, e eu fiquei na defensiva. Lembrei-me de todos os motivos pelos quais nunca gostei dele – e, em cada gesto de bondade que eu demonstrava a ele, mais me lamentava por nunca ter recebido dele nada do gênero. Porém, comecei a ver aquele homem velho e alquebrado de modo mais completo. Eu percebi a sua ansiedade quando eu aparecia toda manhã para visitá-lo – e ele até me ligou no meu aniversário. Certa vez, pus a mão em seu ombro. Ao sentir-se tocado com compaixão, ele chorou e eu o acompanhei; choramos juntos por sua longa e triste vida, lamentando tudo que nos separara.
Lentamente, pude reconhecer a sua doença mental, que estava na raiz de sua incapacidade de amar os outros. E percebi que eu não era a única ferida; ele se sentia da mesma maneira. Com todas essas conclusões, o meu coração, apesar de magoado, foi também curado. Entre as visitas, eu ligava e mandava cartas, presentes e livros. Finalmente, estava amando o meu pai. Eu estava amando a misericórdia, esquecendo o seu egoísmo e os seus crimes e deixando tudo nas mãos de Deus. As coisas, no entanto, não terminaram como eu esperava. Meu pai nunca manifestou interesse ou amor por mim. Ele não reconheceu seus erros, tampouco enxergou em meus gestos uma oportunidade para abrir seu coração para Deus. Quando entrou em coma, minha irmã segurou o telefone em sua orelha e eu lhe falei palavras de amor e perdão, mas, àquela altura, ele já não podia responder. Quando meu pai morreu, apenas dois anos depois do meu retorno à sua vida, chorei por dias seguidos.
Mas esse acontecimento final não é o verdadeiro fim da história. O fim veio antes, quando eu e meus quatro irmãos nos reunimos no pequeno quarto do meu pai. Ele estava vestindo uma camisa bege com listras verdes e um short cáqui que minha irmã e eu havíamos comprado. Eu olhei, maravilhada, ao redor do quarto. Fazia 16 anos que todos nós não nos reuníamos. Naquele momento, nossa família estava reconstituída ao redor daquele que havia nos separado, tantos anos atrás. Eu lembrei da história de José, do Antigo Testamento, na sala de jantar com todos os seus irmãos, presenciando a reconstituição da sua própria família. Era o mesmo conosco. Nosso pai havia magoado cada um de nós, mas decidimos a mesma coisa: não iríamos pagar na mesma moeda. Nós estávamos ali para abençoar, para honrar. Nossa presença não pretendia silenciar o passado, mas recuperá-lo. Encontramo-nos novamente para nos transformar em pessoas que perdoam. Meu pai parecia confuso, mas eu o vi lacrimejar de emoção. Em outra ocasião, ele reconheceu, com palavras gaguejantes, que não era digno de nossa atenção. Quando a hora chegou, ele não morreu sozinho: dois de seus filhos estavam ao seu lado.
Podemos começar a jornada do perdão para aliviar nossos próprios fardos. Mas, ao longo do caminho, descobrimos uma oportunidade de viver a plenitude do Evangelho, amando a quem não merece e perdoando setenta vezes sete vezes. Ao fazer isso, refletimos o Reino de Deus entre nós. Eu poderia, facilmente, ter perdido essa oportunidade. Poderia não ter ouvido aquele que, morrendo numa cruz horrenda, em meio a dores lancinantes, orou por seus algozes: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. Somos chamados a fazer o mesmo. Não seremos capazes de consertar toda a família humana, e nem de perdoar de modo tão perfeito e completo quanto Jesus – mas somos chamados a tentar, por obediência e amor ao Pai que nos perdoou. Comecemos pelas nossas próprias famílias, trazendo para nossos lares destruídos o bálsamo da misericórdia infinita de Cristo. A partir daí, quem sabe aonde o perdão nos levará?