O que se segue é a minha reflexão sobre o caso da “Cruz de Espinal” e, particularmente, da tremenda confusão hermenêutica e teológica que ela se mostrou para muitos cristãos brasileiros. É também uma advertência ao progressismo evangélico, tendo em vista suas condições de sobrevivência para o futuro.
O EVANGELHO DA CRUZ E O EVANGELHO DA VÍTIMA
Quem adoramos quando contemplamos a cruz? Para os Cristãos, o Deus-Homem, ali crucificado, ali vitorioso sobre o mal e salvador do mundo, ali reconciliador do homem com Deus. Não adoramos “a cruz”; a cruz é instrumento de tortura, o símbolo do poder Imperial, o símbolo da potência criada por Cristo, mas dele desviada por Satanás. Não adoramos meramente “o crucificado”, como se sua história houvesse se encerrado ali, no gólgota, mas aquele que foi crucificado e hoje é ressurreto, e vive para sempre, e nós, Nele. Mas podemos sim, dizer que adoramos o nosso Deus, o Deus que, no homem-cordeiro, foi crucificado, o logos que se humilhou, e que anunciamos a Cristo, e a este crucificado.
Adoramos a vítima? Sim… e não. Sim, porque Jesus foi vítima do poder imperial; não, porque ser vítima não é, em si, mérito. Poderia o homem ser justificado pela vitimização? Não; jamais. A vítima deve ser pura, reta; deve ser sem mácula. É a justiça da vítima que justifica, não a vitimização. A vitimização é o crime, é a violência contra Deus e o seu universo. Que justiça pode vir da pura vitimização?
Ainda mais porque a vítima não é vítima, em última instância, se é culpada, se tem mácula. Pois nesse caso, ela não é vítima mas algoz, ainda que travestida de vítima; algoz do outro, algoz de si mesma (quando se tem a persistente oportunidade de transformar a vitimização em mera tragédia romântica, ou até de transferir a culpa) mas sempre algoz do Filho de Deus.
Todos somos algozes de nós mesmos, e uns dos outros, e todos, de Deus. Todos somos também vítimas uns dos outros, mas não de Deus, pois ele não é um criminoso; ele é o justo juiz de toda a terra, e nunca vitimizará o seu mundo, embora certamente seja um juiz terrível.
Por isso, sem jamais ser o ofensor, ele pode ser a vítima e o juiz; só Deus pode ser a vítima; só o homem-Deus pode apresentar-se como vítima. Pois ele não tem mácula; ele é o justo, no sentido absoluto – embora existam justos na terra, os quais no entanto só são justos porquê e quando lhes é concedido participar da justiça do Justo, o Cristo; e toda a sua justiça terrena nunca é mais do que um sinal e uma expressão da justiça do Justo.
Jesus Cristo é a vítima do mundo? Sim; sim de um ponto de vista puramente imanente. É mais uma das vítimas que fazemos todos os dias. Nesse sentido Jesus “é” o judeu marrano, e o judeu em Auschwitz; Jesus “é” o pobre, o cego, o nu, o encarcerado; Jesus “é” o travesti injustiçado; Jesus “é” a criança abandonada; jesus “é” o adolescente infrator que se tornou infrator porque foi esmagado por um sistema injusto; Jesus “é” a mãe solteira e pobre que afogou as mágoas em uma noite de sexo. Jesus “é” a vítima por excelência.
Mas não, sabemos que Jesus não é nenhum deles, em um sentido teológico. Pois “todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3.23) – a criança, o velho, o jovem, a prostituta, o travesti, o ladrão pobre que é linchado no poste, o ladrão rico e amado pelas esquerdas Brasileiras, o cristão-contemporâneo que faz sexo fora do casamento porque seu pastor moderninho liberou, o publicano, o papa, Obama e Osama, Francis Schaeffer e Paul Tillich… somos todos algozes, meus irmãos. E aqueles de nós que foram vitimados na infância, só não saíram da potência ao ato porque não tiveram tempo e oportunidade para tanto.
Mas não se apresenta o Cristo no fraco, no pobre, no encarcerado? Não é o que ensina a parábola das ovelhas e dos bodes, em Mateus 25? Nossa resposta ao Cristo não se manifesta em nossa resposta às vítimas ao nosso redor?
Sem dúvida; mas notemos o fundamental: não é porque essas vítimas são vítimas, que sinalizam o Cristo, como se a vitimidade fosse, em si mesma, Crística. Essa é a falácia do ressentimento, que perversamente se alia, no espírito, ao sofrimento do outro, não por compaixão pela humanidade que nos é comum, mas pela partilha ímpia da mágoa e do ódio reprimido, que tragicamente também nos é comum.
Ademais, o que diz o texto sobre as vítimas? Na verdade, nada se diz sobre serem vítimas inocentes. O sujeito pode ter fome e sede porque foi explorado; mas pode ter fome porque houve uma grande seca, ou porque foi preguiçoso; ainda assim, devemos alimentá-lo. Ele pode estar nu porque despiu-se, porque vendeu o apartamento, e depois o carro, e depois os móveis e depois as roupas, para drogar-se; mas devemos vesti-lo. Ele pode estar doente porque carrega uma doença genética; ele pode estar na prisão porque é criminoso; ele pode ser estrangeiro porque é… bem, estrangeiro.
Não ignoro a tradição profética que associa esses indivíduos em situação de risco à opressão política e econômica; mas a tradição Bíblica nunca tornou a pobreza e o sofrimento em virtudes per se; nunca vinculou o dever do amor ao próximo a uma suavização da culpabilidade e da alienação humana.
E por isso mesmo, as Escrituras nunca trataram a Cruz de Jesus Cristo como salvadora meramente por ser uma cruz. Ela é salvadora porque é a Cruz do Cristo, a única vítima verdadeira, mas também a única capaz de transmutar sua vitimização na Reconciliação de todas as coisas. É a redenção de Cristo que torna especial a Cruz de Cristo. É o sangue do Cordeiro o que torna aceitável o sacrifício e o transfigura, de feio crime, em belíssimo ato Redentivo de Deus.
O que dizer das vítimas que fazemos diariamente? Podem apenas sinalizar, lembrar a vítima que é Cristo; mas acima de tudo, lembremos que tais sacrifícios são sempre impotentes. Eles só nos lembram de que somos culpados; nos lembram que somos os ofensores de nós mesmos; não são atos de Deus, mas nos fazem lembrar de que estamos eternamente perdidos sem um ato de Deus. Nas mãos de Deus, a vitimização do Cristo é a salvação do mundo; mas as “vitimizações” secundárias que realizamos diariamente não são sinais salvadores! São sinais, irmãos, do JUÍZO do mundo!
E Deus prosseguiu: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão está clamando a mim desde a terra. Agora, maldito és tu (Gn 4.10-11)
É isso, e apenas isso, o que o estrangeiro oprimido, o pobre humilhado, o órfão abandonado, o travesti assassinado, o jesuíta martirizado pela ditadura, podem dizer: que agora, somos malditos; todos nós. Mas não é assim com a cruz de Cristo. Pois “Cristo nos resgatou da maldição da lei, tornando-se maldição por nós” (Gl 3.13).
A cruz de Cristo, e só a Cruz de Cristo, transcende a má notícia da maldição! Somente o Cristo na cruz pode transmutar a cruz, de maldição, em salvação! Só Cristo pode transformar o sentido de um símbolo tão terrível em algo tão glorioso, a ponto de o apóstolo dos gentios descrever seu evangelho como “a palavra da Cruz”. Cristo reconciliou consigo todas as coisas, todas… até mesmo a cruz, o aguilhão do império!
Mas isso não transmuta todas as cruzes do mundo, automaticamente. Não; pois não é um “princípio abstrato” de cruz o que nos salva, mas a cruz do Cristo Histórico. Aquela cruz específica, singular, historicamente localizada, erguida de uma vez por todas. Mas essa cruz pode ser presentificada pelo Espírito de Deus, quando o discípulo de Jesus toma a sua cruz, cheio da Esperança da Ressurreição, e com isso transmuta o sentido da sua própria cruz em sinal de vitória sobre o mal. Mas tal luminosidade não procede de sua vitimidade, nem do seu mérito individual; procede da presentificação do único Salvador, Cristo. Assim as nossas cruzes deixam de ser maldições, e se tornam cristãs.
Mas como aparece o Cristo no fraco? Não em sua fraqueza nua, como se o fraco fosse por isso um salvador (e como Nietzsche deseja ver o Cristianismo), mas porque sua fraqueza me confronta com a criaturidade humana e com a maldição humana. Não há evangelho no sofrimento que causamos uns aos outros, e nas ofensas que cometemos contra nós todos os dias. Não há evangelho na injustiça social, nem na doença, nem na ladroagem, nem no preconceito. A criança não é messiânica; o travesti não é messiânico; o Lula não é messiânico; o negro não é messiânico; o pobre não é messiânico. Também não há evangelho na luta humana contra a injustiça e o sofrimento, assim como não havia evangelho na luta farisaica contra o pecado. Mas todas essas situações são oportunidades de nos lembrarmos de que precisamos do messias, porque sem ele, somos todos malditos.
O Evangelho verdadeiro não é mediado pelo “messianismo” do pobre, o “messianismo” da vítima do sistema. O sistema é satânico, os ofensores são malditos, e suas vítimas, miseráveis. O Evangelho verdadeiro não é mediado pela luta humana contra a injustiça humana, pois as nossas justiças não passam de trapos de imundícia. O Evangelho verdadeiro não é o evangelho da vítima, inventado por homens amargos e maquiado intelectualmente pela New Left. O Evangelho verdadeiro não diz respeito ao que os homens fazem, ou pensam que fazem, ou pensam que deveriam fazer, ou sentem que deveriam fazer, mas ao que DEUS faz pelos homens, na SUA cruz.
É A “CRUZ DE ESPINAL”, “EVANGÉLICA”?
“Alexamenos Adora a Deus”, é o que reza a “legenda” no grafite do Palatino, em Roma, datado do século III A.D. E ali está… um asno crucificado. Um asno! Foi, assim, chamado de “O Grafite Blasfemo”.
Quis o pagão ridicularizar o fiel, transmutando o caráter o crucificado, e não tanto o sentido da cruz. Não é um Deus; é um asno. Esse que está sobre cruz não é isso tudo que pensa e crê entre os fiéis.
Mas, como disse um amigo, o Diabo é ambidestro. Não há uma única forma de enfraquecer a igreja de Jesus. Podemos atacar a mensagem da Cruz diretamente, desavergonhadamente, profanando a imagem do Cristo: “um asno!”. Mas o departamento de contrainformação do inferno é mais sutil do que isso. Porque não… enfraquecer a mensagem da Cruz “por dentro”, correndo o seu sentido por meio das línguas, das bocas, das canetas (e, agora, das timelines) dos próprios seguidores do Cristo?
Consideremos a cruz de Evo Morales; a cruz, na verdade, do padre Jesuíta espanhol Luis Espinal Camps, covardemente assassinado por um esquadrão da morte em 21 de Maio de 1980, sob ordens do ditador de direita Garcia Meza. Segundo o papa Francisco, ele foi morto por “dizer verdades”. Pois o evangelho incomoda.
Seria a morte de Espinal uma morte evangélica? Inclino-me a acreditar que sim. Pois se morreu em defesa dos oprimidos, e sofreu imitando a Cristo, e se entregou por saber-se reconciliado por Deus pela única vítima, Jesus Cristo, morreu evangelicamente. Morreu na cruz preparada por um governo ditatorial de direita; lembrou, então, não apenas que somos todos amaldiçoados, mas também que podemos ser, todos, perdoados e abençoados. Se assim foi, bendito seja o padre Espinal. Peço a Deus que me faça digno de desatar a correia de suas sandálias na Nova Criação.
Seria a “cruz de Espinal” uma cruz evangélica? Não a crucificação do próprio Espinal, mas a sua peça artística, o assim-chamado “crucifixo comunista”?
Segundo o presidente Evo Morales, que presenteou o papa Francisco com a escultura, ela seria uma reprodução de uma cruz atribuída a Espinal, que mostra o Jesus Cristo crucificado sobre a combinação da Foice com o Martelo – o símbolo da união entre as forças dos trabalhadores campesinos e do operariado, para constituir a força proletária em luta por justiça e pelo socialismo. Esse símbolo foi apropriado pelo socialismo marxiano e tornou-se, enfim, o símbolo máximo do comunismo internacional.
A situação causou espécie; embaraço, risos, denúncias. Foi descrita por um líder católico boliviano como uma… “travessura”. E que travessura!
A pergunta que se coloca é muito clara: é a cruz de Espinal uma cruz evangélica?
Para ser evangélica, deve anunciar a mensagem da cruz; isso é muito simples. Sejamos empáticos, então: aparentemente, Espinal quis associar o sofrimento do Cristo, na cruz, com o sofrimento e a luta dos trabalhadores por justiça social. De algum modo, então, a morte de Cristo na cruz estaria associada à vitimização e ao sacrifício do trabalhador oprimido pelo capitalismo.
Mas como exatamente seria essa associação? Não sabemos o que passou pela cabeça do sacerdote, como mais de um simpatizante já confessou. Mas podemos fazer hipóteses. Tenho três:
(1) Poderia ser uma denúncia do poder imperial do comunismo internacional, responsável pelo derramamento do sangue de milhões de cristãos; nesse caso, seria uma peça artística de significação martiriológica. Mas esse não parece ser o caso, já que o padre não era, exatamente, um crítico do comunismo; e sua luta histórica era contra uma ditadura de direita. É improvável, portanto, a tese martiriológica, que seria interessantemente evangélica, embora desagradável para os simpatizantes do neopopulismo latinoamericano.
(2) Poderia ser uma denúncia do poder imperial da direita, que oprime e “crucifica” o proletariado, assim como crucificou a Cristo. Nesse caso, o Cristo do crucifixo não seria o próprio Cristo, mas um representante do trabalhador vitimizado pelo sistema. Nos termos que explanei acima, esse seria um uso não-evangélico e vitimista da cruz.
(3) Poderia ser uma denúncia do uso ideológico da crítica produzida pelo poder imperial, como forma de justificar a “crucificação” do trabalhador. Em outros termos: o poder imperial de direita emprega o rótulo “comunista!” como forma de achincalhar e desempoderar o discurso e ação libertadora do proletariado oprimido.
São minhas três hipóteses. Pessoalmente, gosto muito da terceira; ela tornaria a cruz de Espinal um poderoso símbolo contra o uso ideológico do símbolo ideológico – no caso, o que se tornou o símbolo do comunismo – como forma de desqualificar toda e qualquer ação em nome da justiça social ou econômica, ou em defesa do campesinato ou do operariado, ou de recuperação da dimensão social e política do profetismo Bíblico, e posicionamentos semelhantes. Se Espinal pensou nisso, ele foi genial!
Não há evidências disso, no entanto; ninguém se apresentou com essa interpretação, além de mim, menos ainda traçando-a ao discurso próprio Espinal. Mas esse não é o único nem o maior problema da minha hipótese preferida: o maior é, enfim, que nesse caso o símbolo não é evangélico. É apenas um jogo simbólico político. O Cristo seria puramente acidental, como quando dizemos que “Neymar foi crucificado” após alguma declaração inoportuna. Tratar-se-ia de uma metáfora, num sentido Ricoeuriano, em que os sentidos anteriores foram quebrados e esmagados, e de sua síntese emergiu outro sentido. OUTRO sentido: uma denúncia da máquina de propaganda da ditadura de direita.
Ora, ficamos, então, com o sentido mais imediatamente reconhecido pelo populacho, e discutido nas redes sociais: Cristo, o representante do oprimido social, crucificado pela mesma razão que o oprimido é crucificado: por lutar por sua liberdade e dignidade, interpretada pela causa socialista.
Se assim for, a peça não é evangélica, não é realmente cristã. Não seria preciso crer em Cristo como o Cristo de Deus para compor essa metáfora concreta que é o foicefixo. Bastaria admirar a Cristo como exemplo de luta por justiça. O Cristo no foicefixo é qualquer um que sofre injustiça; qualquer um. Na verdade, sem o Cristo verdadeiro, o foicefixo poderia ser empregado para afirmar a inocência da vítima do capital, a classe trabalhadora. Jesus seria mais uma vítima desse sistema; e só. A peça prestar-se-ia, então, ao messianismo do pobre, que não é o verdadeiro Evangelho. Ainda serviria, no entanto, como instrumento de crítica política.
MAS NÃO É SIMPLES ASSIM
Infelizmente, não é tão simples assim. Talvez isso fosse viável, se a foice com o martelo já não tivessem uma história muitíssimo conhecida em todo o mundo ocidental. O símbolo foi inocente, na primeira ou na segunda era da Terra Média; mas a terceira Era alterou permanentemente o seu significado. Todos sabemos porque o símbolo do comunismo é proibido, em países um dia comunistas, como a Polônia, juntamente com a Suástica Nazista: é porque esses símbolos foram cooptados, profanados, indelevelmente marcados e incorporados em programas políticos anti-humanistas, genocidas e satânicos, para usar palavras suaves.
O sentimentalismo procurou lembrar a todos de que num passado distante esses símbolos significaram outra coisa. É verdade; mas a história andou. Eles não significam mais o que significavam, porque o mundo não é mais aquele. O mundo depois de Lenin, de Stálin, de Pol Pot, de Mao, de Fidel, do MR8, não acomoda mais a forma pura e inocente (se um dia o foi) da foice e do martelo.
Mas e quanto à cruz? Não pode ela também ter seu sentido ultrapassado? Ora, essa pergunta só é aceitável na boca de um pagão. Que nenhum Cristão ouse fazê-la; pois “o Cordeiro de Deus foi morto antes da fundação do mundo”. A cruz de Cristo (sempre entendida como “Cristo, e este crucificado”, e nunca apenas dois paus cruzados) é um fato histórico singular, ancorado na eternidade; é um ato de Deus, não um projeto dos homens. Ela está na história, mas é TRANSISTÓRICA. Por isso, não passa, como aquele que faz a vontade de Deus, e permanece para sempre.
Por outro lado, a finitude e determinação histórica do símbolo do comunismo é, ainda, incontornável. A aberração simbólica, ainda que “bem intencionada” de Espinal não tem a potência de quebrar esse condicionamento histórico e nos fazer esquecer do grotesco que foi e que brotou dessa religião secular. Irritam-se os simpatizantes de Morales que os milhões mortos pelo comunismo sejam sempre lembrados, mas não é assim que se trata uma memória dolorida com esta – com a negação. O fundo histórico que acompanha este símbolo é pesado demais para que Espinal efetive com sucesso uma síntese plástica com a mensagem Cristã. A verdade é que a cruz de Espinal se aproxima, demais, de um símbolo ambíguo, útil para confundir o Cristão sobre a relação entre a fé e o Comunismo. Mas essa confusão não pode ser feita. Aqui Franklin Ferreira trouxe à memória a encíclica DIVINIS REDEMPTORIS de Pio XI (1938):
“A doutrina comunista que em nossos dias se apregoa, de modo muito mais acentuado que outros sistemas semelhantes do passado, apresenta-se sob a máscara de redenção dos humildes. E um pseudo-ideal de justiça, de igualdade e de fraternidade universal no trabalho de tal modo impregna toda a sua doutrina e toda a sua atividade dum misticismo hipócrita, que as multidões seduzidas por promessas falazes e como que estimuladas por um contágio violentíssimo lhes comunica um ardor e entusiasmo irreprimível, o que é muito mais fácil em nossos dias, em que a pouco eqüitativa repartição dos bens deste mundo dá como conseqüência a miséria anormal de muitos. Proclamam com orgulho e exaltam até esse pseudo-ideal, como se dele se tivesse originado o progresso econômico, o qual, quando em alguma parte é real, tem explicação em causas muito diversas, como, por exemplo, a intensificação da produção industrial, introduzida em regiões que antes nada disso possuíam, a valorização de enormes riquezas naturais, exploradas com imensos lucros, sem o menor respeito dos direitos humanos, o emprego enfim da coação brutal que dura e cruelmente força os operários a pesadíssimos trabalhos com um salário de miséria.”
Chega muito perto do cinismo, se for mais do que ingenuidade ou sentimentalismo ideológico, a tentativa de ignorar esse fato incontornável da história moderna para recuperar o substrato válido do símbolo comunista, enterrado sob camadas e camadas de injustiça, corrupção e morticínio, para torna-lo – justamente ele – uma releitura da cruz do Cristo. Quem compreenderia essa sutileza artística? Os trabalhadores? Bem, eles não entenderam nada. De minha limitada perspectiva, com a exceção daqueles já ideologicamente doutrinados, o povo fez para o crucifixo a mesma cara que fez o Papa Francisco.
O CRISTO SUPERESTRUTURAL
Mas era isso diferente bem antes da travessura de Evo Morales, quando o querido mártir supostamente compôs a peça? Precisamos reconhecer: não. A essa altura o gulag já era um fato público, que nem o contexto violento e opressor das ditaduras latino-americanas poderia eliminar. Deveria Espinal ter usado esse símbolo manchado do sangue cristão? Não; e não queremos dizer, com isso, que ele deveria ter empregado um símbolo “do capital”. Na verdade, ele não deveria ter invertido de forma alguma a relação entre o Cristo e a cruz, a Vítima divinamente estabelecida e as vítimas/ofensores humanos, pois não se combate os Assírios colocando a confiança nos Egípcios. É idolatria aderir ao socialismo para livrar-se do ídolo capitalista, pois o socialismo e o capitalismo são, ambos, filhos bastardos do Cristianismo, quando este se deitou com a ideologia prometeica do progresso humano, a imanentização da Esperança Cristã. Os devotos religiosos e morais desses “ismos”, o capitalismo e o socialismo – o ídolo e o contra-ídolo – cridos como meios necessários e divinos para a redenção histórica do homem estão, ambos, jantando com o Diabo. Mesmo que sejam membros de igrejas.
A gênese do erro não está, portanto, em Evo Morales; ela vai até o padre Espinal, que independentemente de suas intenções (e reitero meus respeitos ao homem), construiu um artefato simbólico intrinsecamente problemático, intrinsecamente ambíguo, em todos sentidos: tanto do ponto de vista imanente, já que falha miseravelmente em vencer e ressignificar o símbolo do comunismo, quanto do ponto de vista transcendente, pois anuncia o evangelho da vitimização, e não o evangelho do Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. A cruz de Espinal não é uma cruz evangélica. É uma cruz ideológica, uma aberração simbólica; é um artefato problemático, que deseja unir Cristo e a luta social, mas o faz ao custo de sobrepor o crucificado à uma base herética e viciada. O crucificado, ali, não é o mesmo Cristo da Bíblia e da fé; é um Cristo marxiano clássico, o Cristo da superestrutura, o Cristo superposto a uma estrutura que o sustenta e o interpreta, que é… a ideologia.
A dificuldade foi definitivamente expressa pelo colega Rodolfo Amorim, de modo que reproduzo aqui seu comentário, na íntegra (feito no dia 10/07):
Se Espinal fez relações entre libertação de pobres e comunismo, deveríamos como cristãos tê-lo auxiliado a ler a realidade, não? Ou àqueles que conhecem a aberração simbólica por ele produzida. Não foi este comunismo que dizimou dezenas de milhões? Não foi ele que roubou das pessoas até sua consciência privada, algo custosamente sacralizado pelos cristãos? Não foi ele que tirou de seus súditos qualquer direito, a ponto de ser denunciado como o regime mais opressor da história? Portanto, não vejo coerência alguma, seja no símbolo criado por Espinal (não julgo sua vida, mas esta sua obra, ou fruto, específico) ou na atitude do Evo Morales por presentear um Chefe de Estado de, talvez, a representação com mais membros perseguidos pelo próprio sistema comunista (é só ler os relatos dos países do leste europeu com maioria católica e as perseguições e assassinatos sistemáticos feitos por aqueles a estes). Por isso, mesmo exagerando, comparo o ocorrido à imagem de um possível judeu confuso que talhou uma suástica de metal com o símbolo da estrela do Rei Davi, talvez o judeu fosse confuso em unir estes dois símbolos irreconciliáveis. Talvez fosse um ex-judeu. Talvez tivesse perdido a razão. Mas o fato é, se um líder de Estado presenteasse um chefe de estado de Israel com este símbolo, não haveria um, e digo com toda certeza, um judeu, que tentasse “explicar” aos incautos o motivo de tal aberração simbólica do confuso judeu-nazista. Mas com os cristãos, não. Eles ainda vêem a foice e o martelo e evocam imagens de libertação, de luta pelo pobre. É isso que me preocupa. Falta de coerência doutrinária interna e ausência de consciência histórica de muitos cristãos.
QUEM ENGOLIU UM CAMELO?
A princípio, diverti-me bastante com a situação. Pareceu-me cômica, principalmente pela expressão incrédula do Papa Francisco. Mas meu sorriso rapidamente se desvaneceu, quando vi irmãos conhecidos, ligados à ABU, à Rede Fale, à Renas, à Visão Mundial, à FTL, a diversas igrejas, e a outros movimentos evangélicos, defendendo calmamente a cruz de Espinal e o ato político de Evo Morales.
A naturalidade com que estes amigos aderiram festivamente à travessura de Morales revelou, de novo, o que a ala ainda sóbria da teologia evangélica Brasileira já notou há muito tempo: o Cristo de parte do progressismo evangélico nada mais é, hoje, do que um Cristo superestrutural.
Não penso que estou coando mosquitos, aqui. Estou, francamente, tentando arrancar esse enorme camelo que a esquerda evangélica engoliu, e que está parado em sua garganta. Esse camelo vai mata-los. Já está os matando. Mas eles não querem se arrepender. Não querem. É bem possível que morram espiritualmente, entalados com o ídolo ideológico, do qual o evento da cruz de Espinal é apenas a manifestação mais inocentemente pública.
Não sou alarmista, nem julgo injustamente os irmãos. Lembro aos leitores que a mesma ala que defendeu a crucificação Trans, na última parada LGBT, e não viu nenhuma profanação simbólica, é a que não viu agora nenhuma profanação simbólica, numa surpreendente demonstração de falta de escrúpulos religiosos.
Ora, é muito clara, aqui, a operação simbólica: a cruz, para esses irmãos, já não é o mistério do evangelho, já não está ancorada no eterno, já não anuncia o evento singular que foi a morte do Cordeiro de Deus; ela é um símbolo abstrato da vitimização por sistemas injustos, que pode ser amplamente empregada em qualquer situação de vitimização e, num passe de mágica, aquela situação se torna Cristã, se torna uma revelação do evangelho, e a luta social é instantaneamente convertida, batizada, e crismada. Quando eu era criança, via isso acontecer todas as manhãs pela tevê: a teóloga era a boneca Emília, e a magia vinha do seu pó-de-Pirlimpimpim.
Infelizmente, esses irmãos não são mais amigos da verdadeira cruz de Cristo, mas de uma mistificação ideológica; fazendo a igreja deitar-se no “leito” da cruz para dormir com outro Cristo – a ideologia de gênero, ou o marxismo – e louvando desavergonhadamente o adultério. Me digam amigos: não é a situação similar à do bezerro de ouro de Aarão, um símbolo sincrético para representar Iahweh de forma “contextualizada” (ou seja, com a forma de Baal) na AUSÊNCIA de Moisés (a profecia)? Não temos aqui uma blasfêmia, muito mais sutil do que o grafite blasfemo contra Alexamenos, mas ainda assim, mortal?
O NOVO BEZERRO DE OURO
E é assim que a cruz do Cristianismo (não a cruz de Cristo, a verdadeira) tornou-se, nas mãos do progressismo evangélico e católico, um bezerro de ouro. Há uma distante referência histórica, ao Deus que tirou o povo do Egito… e só. No mais, é uma divindade progressista; ela nos prepara para enfrentar o que há diante, Canaã; é um deus com o rosto das divindades locais, com o rosto de Baal-Peor.
Sobre esse perigo da ideologização idólatra da fé Cristã, não foi ninguém senão o próprio Papa Francisco quem nos presenteou com uma advertência muito contemporânea e pertinente, tratando esse erro como a PRIMEIRA tentação do discipulado missionário. Cito o trecho de Jonas Madureira:
Talvez seja interessante lembrarmos também das palavras do próprio Papa Francisco, quando veio ao Brasil por ocasião da XXVIII Jornada Mundial da Juventude, no auditório do Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, Domingo, 28 de Julho de 2013:
“ALGUMAS TENTAÇÕES CONTRA O DISCIPULADO MISSIONÁRIO (…) 1. A ideologização da mensagem evangélica. É uma tentação que se verificou na Igreja desde o início: procurar uma hermenêutica de interpretação evangélica fora da própria mensagem do Evangelho e fora da Igreja. Um exemplo: a dado momento, Aparecida sofreu essa tentação sob a forma de “assepsia” . Foi usado, e está bem, o método de “ver, julgar, agir” (cf. n.º 19). A tentação se encontraria em optar por um “ver” totalmente asséptico, um “ver” neutro, o que não é viável. O ver é sempre influenciado pelo olhar. Não há uma hermenêutica asséptica. Então a pergunta era: Com que olhar vamos ver a realidade? Aparecida respondeu: Com o olhar de discípulo. Assim se entendem os números 20 a 32. Existem outras maneiras de ideologização da mensagem e, atualmente, aparecem na América Latina e no Caribe propostas desta índole. Menciono apenas algumas: a) O reducionismo socializante. É a ideologização mais fácil de descobrir. Em alguns momentos, foi muito forte. Trata-se de uma pretensão interpretativa com base em uma hermenêutica de acordo com as ciências sociais. Engloba os campos mais variados, desde o liberalismo de mercado até às categorizações marxistas. (…)”
Mas alguns de nossos teólogos, pastores, e militantes sociais evangélicos, tal qual Aarão, querem escapar a essa responsabilidade: “lancei o ouro no fogo, e saiu este bezerro!” Mas não foi o “fogo” o que plasmou o messianismo do pobre e o evangelho do ressentimento. Foi o trabalho teológico de teólogos latino-americanos, que plausibilizaram o Cristo superestrutural com o emprego acrítico de “mediações socioanalíticas”, e de teólogos evangélicos Brasileiros que, quando não promoveram essa releitura abertamente, deram sua anuência tácita, evadindo-se de condenar o que precisa ser condenado.
É verdade que o “rosto” desse novo ídolo não é o de um Bezerro, literalmente; ou de um Asno. Ainda assim, não é o rosto do próprio Deus. É uma forma mais sutil, mas possível, de idolatria: o culto da imagem do homem corruptível – no caso, o culto da vítima do sistema:
porque, mesmo tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; pelo contrário, tornaram-se fúteis nas suas especulações, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos e substituíram a glória do Deus incorruptível por imagens semelhantes ao homem corruptível, às aves, aos quadrúpedes e aos répteis. (Romanos 1.21-23)
Há tempos discutimos se há, ou não, idolatria no meio do progressismo evangélico. O fato, no entanto, é que as evidências disso se multiplicam. A última, muito clara, é esse Cristo superestrutural, a vítima abstrata que se torna um símbolo messiânico autônomo em relação ao Cristo histórico; que não é como o Asno de Alexamenos, mas é outro Cristo, ainda assim. E qualquer “outro” Cristo, é um anticristo: parece-se, realmente, com o Cristo; seu culto evoca piedade, sua imagem comove e inspira; mas é um demônio.
Esse é, então, o problema revelado no caso da cruz de Espinal: é que o Diabo imiscuiu-se no progressismo evangélico, convencendo-o de imanentizar e temporalizar a fé Cristã por meio de mediações socioanalíticas apóstatas e, sem seguida, adorar um outro Cristo, crucificado numa outra cruz, como se fosse o Cristo de Deus.
O QUE O PROGRESSISMO EVANGÉLICO PRECISA FAZER
O que pensei ao iniciar este parágrafo foi o mesmo que a maior parte dos leitores: quem sou eu para dizer o que o progressismo evangélico precisa fazer? Não sou ninguém. Mas vou dizer assim mesmo. Se vocês se consideram como Davi, e não me acham nem um pouco parecido com Natã, tomem-me como um Simei, e me ouçam, por favor:
Não proponho que os irmãos abandonem teses de economia política, por exemplo; se tornem de direita, que abracem as teses de Hayek e de Von Mises, ou que se tornem ouvintes de Olavo de Carvalho. Não proponho que abracem a tese do estado mínimo, ou que votem no PSDB. Alguns poderiam pensar que essa é a minha agenda oculta: pois saibam que não é nada disso. Para escândalo de todos, como já confessei antes, tenho, por exemplo, simpatias por Keynes. Não é disso que estou falando: trocar um ídolo por outro. O que proponho é que se obedeça à voz apostólica:
O vosso orgulho não é bom. Não sabeis que um pouco de fermento faz com que toda a massa fique fermentada? Removei o fermento velho, para que sejais massa nova sem fermento, assim como, de fato, sois. Porque Cristo, nosso cordeiro da Páscoa, já foi sacrificado. Portanto, celebremos a festa, não com fermento velho, nem com fermento da maldade e da corrupção, mas com os pães sem fermento da sinceridade e da verdade.
Já vos escrevi por carta que não vos associásseis com os imorais. Não me referia aos imorais deste mundo, nem aos avarentos, ladrões ou idólatras. Nesse caso, seria necessário que saísseis do mundo. Mas agora vos escrevo que não vos associeis com aquele que, dizendo-se irmão, for imoral ou ganancioso, idólatra ou caluniador, bêbado ou ladrão. Com esse homem não deveis nem sequer comer.
Pois, que me importa julgar os que são de fora? Não julgais vós os que são de dentro? Mas Deus julga os que são de fora. Expulsai esse imoral do vosso meio. (1Coríntios 5.6-13)
Esta é, portanto, a minha advertência aos irmãos da “velha guarda” da Missão Integral, que me perguntam “de que lado você está, Guilherme?”, e que se confessam, ao mesmo tempo, horrorizados com os descaminhos da teologia evangélica latino-americana e de movimentos Cristãos ambíguos do ponto de vista da identidade católica e evangélica. Esta é a minha advertência: disciplinem suas fileiras. Disciplinem espiritualmente e confessionalmente o seu movimento. Cortem na sua própria carne. Provem que vocês amam mais a verdade do que a sobrevivência política e do que os abraços de sua juventude colonizada pela USP, pela UFRJ ou pela UNICAMP. Parem de desviar atenção de seus pecados para os pecados da direita evangélica – a hora dela também chegará, mas não cabe a vocês ocupar-se disso – ou o seu movimento estará morto e enterrado espiritualmente em menos de uma geração.
E, por sua culpa, a massa do movimento evangélico será alienada da Missão Integral – por sua culpa! – e engolida por homens como Silas Malafaia. Por sua culpa! Porque vocês foram pusilânimes teologicamente; porque acobertaram a idolatria ideológica de seus jovens, como Davi acobertou os pecados de Absalão, e como Eli acobertou os pecados de seus filhos ímpios. E vocês não serão conhecidos como a igreja que se tornou integral, mas como a igreja que morreu entalada com o camelo da ideologia de esquerda.