Espiritualidade ou misticismo?
Existe em todo o mundo um movimento entre católicos e protestantes que visa resgatar a mística medieval, especialmente as práticas e as disciplinas espirituais dos monges e freiras da Idade Média, como modelo para uma nova espiritualidade hoje. Esse movimento, geralmente conhecido como "espiritualidade", tem sido defendido por líderes católicos e protestantes e apresenta-se como uma reação à frieza, à carnalidade e ao mundanismo da cristandade moderna, especialmente da ala mais conservadora.
Não discordo de tudo o que os defensores da espiritualidade dizem. Quebrantamento, despojamento, mortificação, humildade e amor ao próximo são conceitos bíblicos e encontramos esses conceitos em vários dos seus escritos. Meu problema não é tanto o que eles dizem, mas o que eles não dizem ou dizem muito baixinho, a ponto de se perder no cipoal de outros conceitos.
Sinto falta, por exemplo, de uma ênfase na justificação pela fé em Cristo, pela graça, sem as obras ou méritos humanos, como raiz da espiritualidade. Uma espiritualidade que não se baseia na justificação pela fé e que não nasça dela está fadada a virar, em algum momento, uma tentativa de justificação pela espiritualidade ou pela piedade pessoal, uma tentativa de se chegar a Deus de forma direta e imediata, sem a mediação de Cristo. Não estou dizendo que os defensores da espiritualidade neguem a justificação pela fé somente - talvez os defensores católicos o façam, pois a doutrina católica de fato anatematiza quem defende a salvação pela fé somente. O que estou dizendo é que não encontro essa ênfase à justificação pela fé em Cristo nos escritos que defendem a espiritualidade.
Sinto falta, igualmente, de uma declaração mais aberta e explícita de que a espiritualidade começa com a regeneração, o novo nascimento, e que somente pessoas que nasceram de novo e foram regeneradas pelo Espírito Santo de Deus é que podem realmente se santificar, crescer espiritualmente e ter comunhão íntima com Deus. A ausência da doutrina da regeneração no movimento pode dar a impressão de que por detrás de tudo está a idéia de que a religiosidade natural, inata, do ser humano, por causa da imago dei, seja suficiente para uma aproximação espiritual em relação a Deus mediante o emprego das práticas devocionais.
O caráter progressivo na santificação também está faltando na pregação do movimento. Quando não mantemos em mente o fato de que a santificação é imperfeita nesse mundo, que nunca ficaremos aqui totalmente livres da nossa natureza pecaminosa e de seus efeitos, facilmente podemos nos inclinar para o perfeccionismo, que ao fim traz arrogância ou frustração.
Também gostaria de ver mais claramente explicado o que significa imitar a Jesus, um ponto que é bastante enfatizado no movimento. Até onde sei, Jesus não era cristão. A religião dele era totalmente diferente da nossa. Nós somos pecadores. Jesus não era. Logo, ele não se arrependia, não pedia perdão, não mortificava uma natureza pecaminosa, não lamentava e chorava por seus pecados. Ele não orava em nome de alguém e nem precisava de um mediador entre ele e Deus. Ele não sentia culpa pelo pecado - a não ser quando levou sobre si nossos pecados na cruz. Ele não precisava ser justificado de seus pecados e nem experimentava o processo crescente e contínuo de santificação. A religião de Jesus era a religião do Éden, a religião de Adão e Eva antes de pecarem. Somente eles viveram essa religião. Nós somos cristãos. Eles nunca foram. Jesus nunca foi. Como, portanto, vou imitá-lo nesse sentido? É esse tipo de definição e esclarecimento que sinto falta na literatura da espiritualidade, que constantemente se refere à imitação de Cristo sem maiores qualificações. Quando vemos Jesus somente como exemplo a ser seguido, podemos perdê-lo de vista como nosso Senhor e Salvador. Quando o Novo Testamento fala em imitarmos a Cristo, é sempre em sua disposição de renunciar a si mesmo para fazer a vontade de Deus, sofrendo mansamente as contradições (Fp 2.5; 1Pe 2.21). Mas nunca em imitarmos a Jesus como cristão, em suas práticas devocionais e na sua espiritualidade.
Faltam ainda outras definições em pontos cruciais. Por exemplo, o que realmente significa "ouvir a voz de Deus", algo que aparece constantemente no discurso dos defensores da espiritualidade? Quando fico em silêncio, meditando nas Escrituras, aberto para Deus, o que de fato estou esperando? Ouvir a voz de Deus com esses ouvidos que um dia a terra há de comer? Ouvir uma voz interior? Sentir uma presença espiritual poderosa, definida, que afeta inclusive meu corpo, com tremores, arrepios? Ver uma luz interior, ou até mesmo ter uma visão do Cristo glorificado e manter diálogos com ele, como alguns dizem ter experimentado? Ou talvez essa indefinição do que seja "ouvir a voz de Deus" seja intencional, visto que a indefinição abriga todas as coisas mencionadas acima e outras mais, unindo por essas experiências vagas pessoas das mais diferentes persuasões doutrinárias e teológicas, como católicos e evangélicos, conservadores e liberais?
Por todos esses motivos acima, nunca realmente me senti interessado na espiritualidade proposta por esse movimento. Parece-me uma tentativa de elevação espiritual sem a teologia bíblica, uma tentativa de buscar a Deus por parte de quem já desistiu da doutrina cristã, das verdades formuladas nas Escrituras de maneira proposicional. Prefiro a espiritualidade evangélica tradicional, centrada na justificação pela fé, que enfatiza a graça de Deus recebida mediante a Palavra, os sacramentos e a oração e que vê a santidade como um processo inacabado nesse mundo, embora tendo como alvo a perfeição final.
Enfim. Deus me guarde de ir contra a busca de uma vida cristã superior, de desenvolver a vida interior. Que Ele igualmente me guarde de qualquer tentativa de alcançar isso que não esteja solidamente embasada em Sua Palavra.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
CURA PARA A SURDEZ ESPIRITUAL- POR PHILIP YANCEY
Com toda certeza, sabemos o que é relevante. O que aconteceria se pensássemos um pouco no que é irrelevante?
Houve um tempo em que eu considerava os eremitas reclusos intratáveis, caracterizados principalmente pela obsessão com eles mesmos e pela falta de traquejo social – pessoas parecidas com o Unabomber. Thomas Merton corrigiu meu erro. “Para ser loucos, precisamos de outras pessoas”, explicou ele. “Quando ficamos sozinhos, logo nos cansamos de nossa loucura. Ela é exaustiva.”
Um livro recente de Peter France, Hermits (Eremitas), ajudou a completar o quadro. France desistiu de uma carreira bem sucedida na BBC para se dedicar a uma vida de contemplação em uma ilha grega. Não fez isso como ato de sacrifício, mas sim para buscar a sabedoria que apenas os que vivem em solitude encontram. Viver longe da pressão da opinião popular “confere percepções que não estão disponíveis na sociedade”, concluiu ele.
Santo Antônio do Egito, o famoso Pai do Deserto, escolheu a vida de eremita para um contraste deliberado com sua vida elitizada. Depois de 20 anos isolado, sem ver um rosto humano sequer, ressurgiu saudável, equilibrado e cheio de conselhos sábios. Daí em diante, passou a alternar períodos de isolamento com visitas pastorais. France compara esse padrão ao dos cientistas que trabalham sozinhos na busca de cura para doenças fatais.
Claro que não se pode ler sobre eremitas sem encontrar estranheza. Certo monge desejava uma bela mulher. Ela morreu e ele foi até o túmulo, tirou-lhe a túnica e secou com ela os fluidos do corpo da mulher. Com o mal cheiro perto dele, em sua cela, ele dizia a si mesmo: “É isso que você desejava – aproveite bem”.
Há monges que competem em um tipo de Olimpíada asceta, observando quanto tempo conseguem ficar sem alimento, água ou sono. Eles também possuem um método em sua loucura: as privações causam tanto sofrimento que não deixam espaço para pensamentos carnais.
Frances narra outras histórias que lançam uma luz diferente sobre esses eremitas. Um irmão se gabava de sua disciplina alimentar. O orientador espiritual respondeu: “Não me importa, filho, se você passou 30 anos sem comer carne. Mas quero saber a verdade: quantos dias você passou sem falar mal de seu irmão? Sem julgar o próximo? Sem permitir que seus lábios pronunciassem palavras vãs?”.
A sede de isolamento parece crescer toda vez que a sociedade entra em turbilhão. Os judeus essênios se retiraram para o deserto nos dias de Jesus; Buda afastou-se de todos para se purificar de ilusões sociais; Gandhi mantinha silêncio total às segundas-feiras, prática que não interrompeu nem para reunir-se com o rei da Inglaterra.
A Solitude arranca todas as máscaras e disfarces e quebra dependências desnecessárias aos bens materiais. Henry Thoreau demonstrou uma mistura peculiar de ascetismo, amor à natureza e autoconfiança. Um dos amigos dele comentou que Thoreau aproveitava mais 10 minutos passados com um rouxinol do que a maioria dos homens desfrutaria em uma noite com Cleópatra. Thoreau insistia: “Nunca encontrei companheiro tão agradável quanto a solitude”.
No fim do século XVIII e início do XIX, os ingleses da baixa nobreza contratavam “eremitas de ornamentação”. Reconhecendo o valor da solitude, mas sem disposição para suportar os rigores que ela impõe, os ricos abrigavam esses substitutos em pequenas habitações nos jardins luxuosos. Se você não pode se dedicar a uma vida de simplicidade e oração, por que não pagar alguém para fazer isso em seu lugar?
Thomas Merton foi o melhor apologista da vida de solitude em nosso século. Considerava a vida em sociedade um verdadeiro sacrifício e solicitava constantemente o privilégio da solitude, que só lhe foi concedido após 24 anos. Merton ansiava por se unir aos “homens nesta Terra miserável, tumultuada e cruel, homens que saboreavam a alegria maravilhosa do silêncio e da solitude, que habitavam em celas nas montanhas esquecidas, em monastérios isolados, onde notícias, desejos, apetites e conflitos do mundo não os alcançavam”. Ainda assim, insistia que “a única justificativa para uma vida de solitude deliberada é a convicção de que ela ajudará a amar não apenas a Deus, mas também o semelhante.
Merton provou que a vida de solitude não leva, necessariamente, ao isolamento ou à estranheza. Nosso século não conheceu observador da política, da cultura e da religião mais preciso do que esse monge que raramente falava e não deixava quase nunca o monastério.
Fico surpreso por a Igreja não ter reagido ao tumulto do século que termina com um movimento rumo à solitude. Elias, Moisés e Jacó encontraram-se com Deus quando estavam sozinhos. O apóstolo Paulo, João Batista e o próprio Jesus saíram para o deserto em busca de alimento espiritual.
É fato certo que dominados a relevância. As páginas de organizações religiosas na internet são um primor técnico. Novos grupos de música cristã brotam aos montes, em resposta à menor alteração cultural. O que aconteceria se buscássemos um pouco de irrelevância?
O que aconteceria se todos os cristãos fizessem uma caminhada de duas horas pela natureza todas as semanas, sem falar? Ou se, como Gandhi, observássemos um dia de silêncio? Ele escolheu as segundas-feiras. O que aconteceria se ficássemos em silêncio todos os domingos, depois da Escola Dominical? Sendo ainda mais radical, o que aconteceria se silenciássemos todos os eventos esportivos da televisão e do rádio nos domingos?
É melhor eu parar aqui. Como os eremitas nos mostram, essas disciplinas espirituais podem sair de nosso controle.
Houve um tempo em que eu considerava os eremitas reclusos intratáveis, caracterizados principalmente pela obsessão com eles mesmos e pela falta de traquejo social – pessoas parecidas com o Unabomber. Thomas Merton corrigiu meu erro. “Para ser loucos, precisamos de outras pessoas”, explicou ele. “Quando ficamos sozinhos, logo nos cansamos de nossa loucura. Ela é exaustiva.”
Um livro recente de Peter France, Hermits (Eremitas), ajudou a completar o quadro. France desistiu de uma carreira bem sucedida na BBC para se dedicar a uma vida de contemplação em uma ilha grega. Não fez isso como ato de sacrifício, mas sim para buscar a sabedoria que apenas os que vivem em solitude encontram. Viver longe da pressão da opinião popular “confere percepções que não estão disponíveis na sociedade”, concluiu ele.
Santo Antônio do Egito, o famoso Pai do Deserto, escolheu a vida de eremita para um contraste deliberado com sua vida elitizada. Depois de 20 anos isolado, sem ver um rosto humano sequer, ressurgiu saudável, equilibrado e cheio de conselhos sábios. Daí em diante, passou a alternar períodos de isolamento com visitas pastorais. France compara esse padrão ao dos cientistas que trabalham sozinhos na busca de cura para doenças fatais.
Claro que não se pode ler sobre eremitas sem encontrar estranheza. Certo monge desejava uma bela mulher. Ela morreu e ele foi até o túmulo, tirou-lhe a túnica e secou com ela os fluidos do corpo da mulher. Com o mal cheiro perto dele, em sua cela, ele dizia a si mesmo: “É isso que você desejava – aproveite bem”.
Há monges que competem em um tipo de Olimpíada asceta, observando quanto tempo conseguem ficar sem alimento, água ou sono. Eles também possuem um método em sua loucura: as privações causam tanto sofrimento que não deixam espaço para pensamentos carnais.
Frances narra outras histórias que lançam uma luz diferente sobre esses eremitas. Um irmão se gabava de sua disciplina alimentar. O orientador espiritual respondeu: “Não me importa, filho, se você passou 30 anos sem comer carne. Mas quero saber a verdade: quantos dias você passou sem falar mal de seu irmão? Sem julgar o próximo? Sem permitir que seus lábios pronunciassem palavras vãs?”.
A sede de isolamento parece crescer toda vez que a sociedade entra em turbilhão. Os judeus essênios se retiraram para o deserto nos dias de Jesus; Buda afastou-se de todos para se purificar de ilusões sociais; Gandhi mantinha silêncio total às segundas-feiras, prática que não interrompeu nem para reunir-se com o rei da Inglaterra.
A Solitude arranca todas as máscaras e disfarces e quebra dependências desnecessárias aos bens materiais. Henry Thoreau demonstrou uma mistura peculiar de ascetismo, amor à natureza e autoconfiança. Um dos amigos dele comentou que Thoreau aproveitava mais 10 minutos passados com um rouxinol do que a maioria dos homens desfrutaria em uma noite com Cleópatra. Thoreau insistia: “Nunca encontrei companheiro tão agradável quanto a solitude”.
No fim do século XVIII e início do XIX, os ingleses da baixa nobreza contratavam “eremitas de ornamentação”. Reconhecendo o valor da solitude, mas sem disposição para suportar os rigores que ela impõe, os ricos abrigavam esses substitutos em pequenas habitações nos jardins luxuosos. Se você não pode se dedicar a uma vida de simplicidade e oração, por que não pagar alguém para fazer isso em seu lugar?
Thomas Merton foi o melhor apologista da vida de solitude em nosso século. Considerava a vida em sociedade um verdadeiro sacrifício e solicitava constantemente o privilégio da solitude, que só lhe foi concedido após 24 anos. Merton ansiava por se unir aos “homens nesta Terra miserável, tumultuada e cruel, homens que saboreavam a alegria maravilhosa do silêncio e da solitude, que habitavam em celas nas montanhas esquecidas, em monastérios isolados, onde notícias, desejos, apetites e conflitos do mundo não os alcançavam”. Ainda assim, insistia que “a única justificativa para uma vida de solitude deliberada é a convicção de que ela ajudará a amar não apenas a Deus, mas também o semelhante.
Merton provou que a vida de solitude não leva, necessariamente, ao isolamento ou à estranheza. Nosso século não conheceu observador da política, da cultura e da religião mais preciso do que esse monge que raramente falava e não deixava quase nunca o monastério.
Fico surpreso por a Igreja não ter reagido ao tumulto do século que termina com um movimento rumo à solitude. Elias, Moisés e Jacó encontraram-se com Deus quando estavam sozinhos. O apóstolo Paulo, João Batista e o próprio Jesus saíram para o deserto em busca de alimento espiritual.
É fato certo que dominados a relevância. As páginas de organizações religiosas na internet são um primor técnico. Novos grupos de música cristã brotam aos montes, em resposta à menor alteração cultural. O que aconteceria se buscássemos um pouco de irrelevância?
O que aconteceria se todos os cristãos fizessem uma caminhada de duas horas pela natureza todas as semanas, sem falar? Ou se, como Gandhi, observássemos um dia de silêncio? Ele escolheu as segundas-feiras. O que aconteceria se ficássemos em silêncio todos os domingos, depois da Escola Dominical? Sendo ainda mais radical, o que aconteceria se silenciássemos todos os eventos esportivos da televisão e do rádio nos domingos?
É melhor eu parar aqui. Como os eremitas nos mostram, essas disciplinas espirituais podem sair de nosso controle.
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
DEUS É AMOR. O QUE SIGNIFICA ISSO? - POR RICARDO GONDIM
Deus é amor. Eis a declaração central para se entender o cristianismo. Amor não é atributo que torna Deus racionalmente compreensível. Em Jesus, Deus não se assemelha a um Júpiter que dita, e micro gerencia, os nano detalhes do universo. Deus ama. Nesta afirmação se alicerça a mensagem de que ele não deseja outro tipo de relacionamento com a sua criação.
Uma autêntica relacionalidade com Deus só será possível caso se aceite que ele criou pessoas com liberdade. A correlação amor e liberdade é estreita. Relacionamento verdadeiro só acontece quando aceitação e rejeição se tangenciam. Isto implica que mulheres e homens têm o poder de voltar as costas para a oferta de amor. Deus ama. Portanto, não se força – “eis que estou à porta e bato”.
Quando Deus interpela, homens e mulheres são capazes de responderem sim ou de frustrá-lo. Está escrito em Lucas 7.30 que os indivíduos possuem liberdade de dar as costas ao conselho ou propósito (grego, boulê) de Deus: “Mas os fariseus e os peritos da lei rejeitaram o propósito (boulê) de Deus para eles, não sendo batizados por João”.
Também está escrito em Lucas 13.34 que a vontade (grego, thelô) de Deus pode ser frustrada. O lamento de Jesus sobre Jerusalém é emblemático: “Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram!”.
Deus não brinca, não dissimula, sua liberdade é real. Não faz sentido imaginar uma divindade escondendo alguma agenda na manga ou induzindo as criaturas a se sentirem livres sem que realmente sejam. Homens e mulheres apenas cumpririam um roteiro previamente escrito e determinado. Aceitar que Deus mantenha atos secretos, nega a revelação de que ele seja luz; nele não há sombra ou suspeita. C.S. Lewis argumentou sobre a onipotência divina em “O problema do Sofrimento” e concluiu:
A sua onipotência significa poder fazer tudo o que é intrinsecamente possível, e não para fazer o que é intrinsecamente impossível. É possível atribuir-lhe milagres, mas não tolices. Isto não é um limite ao seu poder. Se disser: “Deus não pode dar a uma criatura o livre-arbítrio e, ao mesmo tempo, negar-lhe o livre arbítrio não conseguiu dizer nada sobre Deus
O Deus bíblico cativa amorosamente os seres humanos e os interpela para que se comprometam com a construção da história – que ainda não está pronta. O teólogo uruguaio Juan Luis Segundo dizia que “com infinita liberdade, Deus se dá a si próprio os limites que supõe (para não ser contraditório) todo amor no trato interpessoal. E isso nos recorda outra limitação, a suprema, realizada por Deus: a da Encarnação (cf. Fl, 2.7)”. Quando encarnou, Jesus não se fantasiou de humano, mas assumiu as limitações contingenciais comuns a todos.
Mesmo que alguns considerem absurdo, Deus corre, sim, riscos. A liberdade que ele soberanamente decidiu fundamentar suas relações abre diques tanto das virtudes como dos vícios. Mesmo assim, a liberdade que pavimenta o chão de seus relacionamentos não significa que Deus não consiga, em sua infinita sabedoria, desencalacrar o universo das possíveis consequências do mal. Deus é capaz de mobilizar gente disposta a redesenhar a história, nem que a partir de tragédias.
Como não está sujeito a qualquer necessidade, nada o força a fazer qualquer coisa. As Escrituras não deixam dúvida: em sua liberdade, Deus decidiu não controlar tudo o que acontece. Mas sua decisão foi coerente com seu próprio ser. Porque Deus é amor, convoca a homens e mulheres se tornem seus parceiros na condução da história. Este gesto é desdobramento de seu caráter. Deus jamais agrilhoaria a história; jamais colocaria cabrestos em seus filhos. A partir de sua boa vontade e de sua liberdade, Ele criou e convocou seus filhos para, em diálogo amoroso, entrar em parceria na construção do amanhã.
Espiritualidade só será verdadeira se aproximar as aparentes contradições da vida. Orar é acreditar que uma conversa genuína aconteceu. Houve uma sintonia entre a criatura e o Divino. Oram bem os que aceitam ser possível enlaçar e co-operar com Deus para, de alguma forma, alterar os eventos futuros – que não estão fixados.
O cristianismo não navega nas mesmas águas da religiosidade grega. Desde a metafísica aristotélica, a história era entendida como um destino inexorável. O pensamento helênico negava o valor e a consistência das parcerias entre Deus e a humanidade. Lamentavelmente, esse fatalismo ganhou força com a teologia da “Providência” que procura mostrar que Deus mantém a sua vontade em mundo contingencial. Na teologia iluminista, Deus passou a ser descrito com as mesmas atribuições que o “Motor Imóvel” de Aristóteles: um oleiro impassivo que zela por sua própria glória, não admite questionamentos, e não tem escrúpulos de usar vidas humanas para conduzir a história ao seu fim majestoso.
Essa função atribuída a Deus de organizar a ordem cósmica tornou-se um absoluto inquestionável do cristianismo. Os teólogos passaram a afirmar, com absoluta certeza, que Deus, desde sempre, decretou cada mínimo detalhe do que acontece no universo e nas vidas humanas. Assim, tanto o bem como o mal só ocorrem por sua vontade. Auschwitz, tráfico internacional de crianças para pedofilia e Darfur são, em última análise "da sua vontade, pois, se Deus permitiu é porque tem algum propósito".
Juan Luis Segundo negou que esta divindade se pareça com o Deus bíblico: “O fato é que o Deus de Aristóteles e o Deus que, segundo João, é Amor, não são a mesma coisa. Se Deus é amor, é mister refazer o conceito da realidade divina".
Portanto, liberdade adquire maior importância para que a espiritualidade não seja alienante (Marx), infantilizante (Freud) ou desumanizante (Nietzsche).
José Comblin afirmou que “as formas da antiga cristandade estão se apagando. Com o desaparecimento da cultura rural, o cristianismo dos avôs já pertence ao passado. Não adianta querer ressuscitar o passado nem querer contar com os movimentos de “entusiasmo” religioso para fundar nova cristandade... O evangelho é este: ‘Cristo nos libertou para que vivêssemos em liberdade’ (Gl 5.1).’Foi para a liberdade que vocês foram chamados (Gl 5.3). Deus é liberdade e nos criou para a liberdade. Esta é a nossa vocação humana. O sentido da nossa vida é construir e conquistar a liberdade".
Soli Deo Gloria
Uma autêntica relacionalidade com Deus só será possível caso se aceite que ele criou pessoas com liberdade. A correlação amor e liberdade é estreita. Relacionamento verdadeiro só acontece quando aceitação e rejeição se tangenciam. Isto implica que mulheres e homens têm o poder de voltar as costas para a oferta de amor. Deus ama. Portanto, não se força – “eis que estou à porta e bato”.
Quando Deus interpela, homens e mulheres são capazes de responderem sim ou de frustrá-lo. Está escrito em Lucas 7.30 que os indivíduos possuem liberdade de dar as costas ao conselho ou propósito (grego, boulê) de Deus: “Mas os fariseus e os peritos da lei rejeitaram o propósito (boulê) de Deus para eles, não sendo batizados por João”.
Também está escrito em Lucas 13.34 que a vontade (grego, thelô) de Deus pode ser frustrada. O lamento de Jesus sobre Jerusalém é emblemático: “Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram!”.
Deus não brinca, não dissimula, sua liberdade é real. Não faz sentido imaginar uma divindade escondendo alguma agenda na manga ou induzindo as criaturas a se sentirem livres sem que realmente sejam. Homens e mulheres apenas cumpririam um roteiro previamente escrito e determinado. Aceitar que Deus mantenha atos secretos, nega a revelação de que ele seja luz; nele não há sombra ou suspeita. C.S. Lewis argumentou sobre a onipotência divina em “O problema do Sofrimento” e concluiu:
A sua onipotência significa poder fazer tudo o que é intrinsecamente possível, e não para fazer o que é intrinsecamente impossível. É possível atribuir-lhe milagres, mas não tolices. Isto não é um limite ao seu poder. Se disser: “Deus não pode dar a uma criatura o livre-arbítrio e, ao mesmo tempo, negar-lhe o livre arbítrio não conseguiu dizer nada sobre Deus
O Deus bíblico cativa amorosamente os seres humanos e os interpela para que se comprometam com a construção da história – que ainda não está pronta. O teólogo uruguaio Juan Luis Segundo dizia que “com infinita liberdade, Deus se dá a si próprio os limites que supõe (para não ser contraditório) todo amor no trato interpessoal. E isso nos recorda outra limitação, a suprema, realizada por Deus: a da Encarnação (cf. Fl, 2.7)”. Quando encarnou, Jesus não se fantasiou de humano, mas assumiu as limitações contingenciais comuns a todos.
Mesmo que alguns considerem absurdo, Deus corre, sim, riscos. A liberdade que ele soberanamente decidiu fundamentar suas relações abre diques tanto das virtudes como dos vícios. Mesmo assim, a liberdade que pavimenta o chão de seus relacionamentos não significa que Deus não consiga, em sua infinita sabedoria, desencalacrar o universo das possíveis consequências do mal. Deus é capaz de mobilizar gente disposta a redesenhar a história, nem que a partir de tragédias.
Como não está sujeito a qualquer necessidade, nada o força a fazer qualquer coisa. As Escrituras não deixam dúvida: em sua liberdade, Deus decidiu não controlar tudo o que acontece. Mas sua decisão foi coerente com seu próprio ser. Porque Deus é amor, convoca a homens e mulheres se tornem seus parceiros na condução da história. Este gesto é desdobramento de seu caráter. Deus jamais agrilhoaria a história; jamais colocaria cabrestos em seus filhos. A partir de sua boa vontade e de sua liberdade, Ele criou e convocou seus filhos para, em diálogo amoroso, entrar em parceria na construção do amanhã.
Espiritualidade só será verdadeira se aproximar as aparentes contradições da vida. Orar é acreditar que uma conversa genuína aconteceu. Houve uma sintonia entre a criatura e o Divino. Oram bem os que aceitam ser possível enlaçar e co-operar com Deus para, de alguma forma, alterar os eventos futuros – que não estão fixados.
O cristianismo não navega nas mesmas águas da religiosidade grega. Desde a metafísica aristotélica, a história era entendida como um destino inexorável. O pensamento helênico negava o valor e a consistência das parcerias entre Deus e a humanidade. Lamentavelmente, esse fatalismo ganhou força com a teologia da “Providência” que procura mostrar que Deus mantém a sua vontade em mundo contingencial. Na teologia iluminista, Deus passou a ser descrito com as mesmas atribuições que o “Motor Imóvel” de Aristóteles: um oleiro impassivo que zela por sua própria glória, não admite questionamentos, e não tem escrúpulos de usar vidas humanas para conduzir a história ao seu fim majestoso.
Essa função atribuída a Deus de organizar a ordem cósmica tornou-se um absoluto inquestionável do cristianismo. Os teólogos passaram a afirmar, com absoluta certeza, que Deus, desde sempre, decretou cada mínimo detalhe do que acontece no universo e nas vidas humanas. Assim, tanto o bem como o mal só ocorrem por sua vontade. Auschwitz, tráfico internacional de crianças para pedofilia e Darfur são, em última análise "da sua vontade, pois, se Deus permitiu é porque tem algum propósito".
Juan Luis Segundo negou que esta divindade se pareça com o Deus bíblico: “O fato é que o Deus de Aristóteles e o Deus que, segundo João, é Amor, não são a mesma coisa. Se Deus é amor, é mister refazer o conceito da realidade divina".
Portanto, liberdade adquire maior importância para que a espiritualidade não seja alienante (Marx), infantilizante (Freud) ou desumanizante (Nietzsche).
José Comblin afirmou que “as formas da antiga cristandade estão se apagando. Com o desaparecimento da cultura rural, o cristianismo dos avôs já pertence ao passado. Não adianta querer ressuscitar o passado nem querer contar com os movimentos de “entusiasmo” religioso para fundar nova cristandade... O evangelho é este: ‘Cristo nos libertou para que vivêssemos em liberdade’ (Gl 5.1).’Foi para a liberdade que vocês foram chamados (Gl 5.3). Deus é liberdade e nos criou para a liberdade. Esta é a nossa vocação humana. O sentido da nossa vida é construir e conquistar a liberdade".
Soli Deo Gloria
O NOVO ATEU - POR RICARDO BARBOSA DE SOUZA
Hoje, o ateu não é mais aquele que não crê, mas aquele que não encontra relevância para Deus na sua rotina. O novo ateísmo não precisa negar a fé; apenas cria substitutos para ela. Mantém o crente na igreja, mas longe do seu Salvador"
Sabemos que existem vários tipos de ateus. Existem aqueles que não crêem em Deus por não encontrarem respostas para os grandes dilemas da humanidade como violência, miséria e sofrimento. Não conseguem relacionar um Deus de amor com o sofrimento humano. Outros não crêem porque não encontram uma razão lógica e racional que explique os mistérios da fé, como a criação do mundo, o dilúvio, o nascimento virginal, a ressurreição, céu, inferno, etc. Diante de temas tão complexos que requerem fé num Deus pessoal, Criador e Redentor, muitos não conseguem crer naquilo que lhes parece racionalmente absurdo.
Os dois tipos de ateus já mencionados são inofensivos. Na verdade, são pessoas que buscam respostas, são honestos e não aceitam qualquer argumento barato como justificativa para suas grandes dúvidas. São sinceros e lutam contra uma incredulidade que os consome, uma falta de fé que nunca encontra resposta para os grandes mistérios da vida e de Deus.
No entanto há um outro tipo de ateu, mais dissimulado, que cresce entre nós, que crê em Deus e não apresenta nenhuma dúvida quanto aos mistérios da fé, nem em relação aos grandes temas existenciais. Ele vai à igreja, canta, ora e chega até a contribuir. É religioso e gosta de conversar sobre os temas da religião. Contudo, a relevância de Cristo, sua morte e ressurreição para a vida e a devoção pessoal é praticamente nula. São ateus crédulos. O ateu moderno não é mais somente aquele que não crê, mas aquele para quem Deus não é relevante.
Este é um novo quadro que começa a ser pintado nas igrejas cristãs. Saem de cena os grandes heróis e mártires da fé do passado e entram os apáticos e acomodados cristãos modernos. Aqueles cristãos que entregaram suas vidas à causa do Evangelho, que deixaram-se consumir de paixão e zelo pela Igreja de Cristo, que viveram com integridade e honraram o chamado e a vocação que receberam do Senhor, que sofreram e morreram por causa de sua fé, convicções e amor a Cristo, fazem parte de uma lembrança remota que às vezes chega a nos inspirar.
Os cristãos modernos crêem como os outros creram, mas não se entregam como se entregaram. Partilham das mesmas convicções, recitam o mesmo credo, freqüentam as mesmas igrejas, cantam os mesmos hinos e lêem a mesma Bíblia, mas o efeito é tragicamente diferente. É raro hoje encontrar alguém em cujo coração arde o desejo de ver um amigo, parente, colega de trabalho ou escola convertendo-se a Cristo e sendo salvo da condenação eterna. Os desejos, quando muito, se limitam a visitar uma igreja, buscar uma "bênção", receber uma oração; mas a conversão a Cristo, o discipulado com todas as suas implicações, são coisa que não nos atraem mais.
Os anseios pela volta de Cristo, o desejo de nos encontrarmos com Ele e ver restaurada a justiça e a ordem da criação ficaram para trás. Somente alguns saudosos dos velhos tempos lembram-se ainda dos hinos que enchiam de esperança o coração dos que aguardavam a manifestação do Reino. A preocupação com a moral e a ética, com o bom testemunho, com a vida santa e reta não nos perturba mais - somos modernos, aprendemos a respeitar o espaço dos outros. O cuidado com os irmãos, o zelo para que andem nos caminhos do Senhor, as exortações, repreensões e correções não fazem parte do elenco de nossas preocupações. Afinal, cada um é grande e sabe o que faz.
Enfim, somos ateus modernos, o pior tipo de ateu que já apareceu. Citamos com convicção o Credo Apostólico, mas o que cremos não tem nenhuma relevância com a forma como vivemos. A pessoa de Cristo para muitos é apenas mais uma grife religiosa, não uma pessoa que nos chama para segui-lo. O ateísmo moderno se caracteriza pela irrelevância da fé, das convicções, do significado da igreja e da comunhão dos santos.
A irrelevância de Deus para a vida moderna é intensificada pela cultura tecnocrática. Temos técnicas para tudo: para ter um matrimônio perfeito, criar filhos felizes e obedientes, obter plena satisfação sexual no casamento, passos para uma oração eficaz, como conseguir a plenitude do Espírito Santo e muitos outros "como fazer" que entopem as prateleiras das livrarias e o cardápio dos congressos. A sociedade moderna vem criando os métodos e as técnicas que reduzem nossa necessidade de Deus, a dependência dEle e a relevância da comunhão com Ele. Chamamos uma boa música de adoração, um convívio agradável de comunhão, uma moral sadia de santificação, assiduidade nos programas da igreja de compromisso com o Reino de Deus.
As técnicas não apenas criam atalhos para os caminhos complexos da vida, como procuram inverter os pólos de atenção e dependência. Tornamo-nos mais dependentes de nós do que de Deus, acreditamos mais na eficiência do que na graça, buscamos mais a competência do que a unção, cremos mais na propaganda do que no poder do Evangelho. Tenho ouvido falar de igrejas que são orientadas por profissionais de planejamento estratégico. Estudam o perfil da comunidade, planejam seu desenvolvimento, arquitetam seu crescimento e, de repente, descobrem que funcionam, crescem, são eficientes, e não dependem de Deus para nada do que foi planejado. Com ou sem oração a igreja vai crescer, vai funcionar. Deus tornou-se irrelevante. Tornamo-nos ateus crentes.
A minha preocupação não é simplesmente criticar o mundo religioso abstrato, superficial e impessoal que criamos ou criticar a tecnologia moderna que, sem dúvida, pode e tem nos ajudado. Minha preocupação é com o coração cada vez mais distante, mais abstrato, mais centralizado naquilo que não é Deus, mais dependente das propagandas e estímulos religiosos, mais interessado no consumo espiritual do que numa relação pessoal com Deus.
Como disse, o ateu hoje não é mais aquele que não crê, mas aquele que não encontra relevância para Deus na sua rotina, não precisa da comunhão dEle para a vida. A sutileza do novo ateísmo é que ele não precisa negar a fé, apenas cria substitutos para ela. Mantém o crente na igreja, mas longe do seu Salvador. Este ateu está muito mais presente entre nós do que imaginamos.
Sabemos que existem vários tipos de ateus. Existem aqueles que não crêem em Deus por não encontrarem respostas para os grandes dilemas da humanidade como violência, miséria e sofrimento. Não conseguem relacionar um Deus de amor com o sofrimento humano. Outros não crêem porque não encontram uma razão lógica e racional que explique os mistérios da fé, como a criação do mundo, o dilúvio, o nascimento virginal, a ressurreição, céu, inferno, etc. Diante de temas tão complexos que requerem fé num Deus pessoal, Criador e Redentor, muitos não conseguem crer naquilo que lhes parece racionalmente absurdo.
Os dois tipos de ateus já mencionados são inofensivos. Na verdade, são pessoas que buscam respostas, são honestos e não aceitam qualquer argumento barato como justificativa para suas grandes dúvidas. São sinceros e lutam contra uma incredulidade que os consome, uma falta de fé que nunca encontra resposta para os grandes mistérios da vida e de Deus.
No entanto há um outro tipo de ateu, mais dissimulado, que cresce entre nós, que crê em Deus e não apresenta nenhuma dúvida quanto aos mistérios da fé, nem em relação aos grandes temas existenciais. Ele vai à igreja, canta, ora e chega até a contribuir. É religioso e gosta de conversar sobre os temas da religião. Contudo, a relevância de Cristo, sua morte e ressurreição para a vida e a devoção pessoal é praticamente nula. São ateus crédulos. O ateu moderno não é mais somente aquele que não crê, mas aquele para quem Deus não é relevante.
Este é um novo quadro que começa a ser pintado nas igrejas cristãs. Saem de cena os grandes heróis e mártires da fé do passado e entram os apáticos e acomodados cristãos modernos. Aqueles cristãos que entregaram suas vidas à causa do Evangelho, que deixaram-se consumir de paixão e zelo pela Igreja de Cristo, que viveram com integridade e honraram o chamado e a vocação que receberam do Senhor, que sofreram e morreram por causa de sua fé, convicções e amor a Cristo, fazem parte de uma lembrança remota que às vezes chega a nos inspirar.
Os cristãos modernos crêem como os outros creram, mas não se entregam como se entregaram. Partilham das mesmas convicções, recitam o mesmo credo, freqüentam as mesmas igrejas, cantam os mesmos hinos e lêem a mesma Bíblia, mas o efeito é tragicamente diferente. É raro hoje encontrar alguém em cujo coração arde o desejo de ver um amigo, parente, colega de trabalho ou escola convertendo-se a Cristo e sendo salvo da condenação eterna. Os desejos, quando muito, se limitam a visitar uma igreja, buscar uma "bênção", receber uma oração; mas a conversão a Cristo, o discipulado com todas as suas implicações, são coisa que não nos atraem mais.
Os anseios pela volta de Cristo, o desejo de nos encontrarmos com Ele e ver restaurada a justiça e a ordem da criação ficaram para trás. Somente alguns saudosos dos velhos tempos lembram-se ainda dos hinos que enchiam de esperança o coração dos que aguardavam a manifestação do Reino. A preocupação com a moral e a ética, com o bom testemunho, com a vida santa e reta não nos perturba mais - somos modernos, aprendemos a respeitar o espaço dos outros. O cuidado com os irmãos, o zelo para que andem nos caminhos do Senhor, as exortações, repreensões e correções não fazem parte do elenco de nossas preocupações. Afinal, cada um é grande e sabe o que faz.
Enfim, somos ateus modernos, o pior tipo de ateu que já apareceu. Citamos com convicção o Credo Apostólico, mas o que cremos não tem nenhuma relevância com a forma como vivemos. A pessoa de Cristo para muitos é apenas mais uma grife religiosa, não uma pessoa que nos chama para segui-lo. O ateísmo moderno se caracteriza pela irrelevância da fé, das convicções, do significado da igreja e da comunhão dos santos.
A irrelevância de Deus para a vida moderna é intensificada pela cultura tecnocrática. Temos técnicas para tudo: para ter um matrimônio perfeito, criar filhos felizes e obedientes, obter plena satisfação sexual no casamento, passos para uma oração eficaz, como conseguir a plenitude do Espírito Santo e muitos outros "como fazer" que entopem as prateleiras das livrarias e o cardápio dos congressos. A sociedade moderna vem criando os métodos e as técnicas que reduzem nossa necessidade de Deus, a dependência dEle e a relevância da comunhão com Ele. Chamamos uma boa música de adoração, um convívio agradável de comunhão, uma moral sadia de santificação, assiduidade nos programas da igreja de compromisso com o Reino de Deus.
As técnicas não apenas criam atalhos para os caminhos complexos da vida, como procuram inverter os pólos de atenção e dependência. Tornamo-nos mais dependentes de nós do que de Deus, acreditamos mais na eficiência do que na graça, buscamos mais a competência do que a unção, cremos mais na propaganda do que no poder do Evangelho. Tenho ouvido falar de igrejas que são orientadas por profissionais de planejamento estratégico. Estudam o perfil da comunidade, planejam seu desenvolvimento, arquitetam seu crescimento e, de repente, descobrem que funcionam, crescem, são eficientes, e não dependem de Deus para nada do que foi planejado. Com ou sem oração a igreja vai crescer, vai funcionar. Deus tornou-se irrelevante. Tornamo-nos ateus crentes.
A minha preocupação não é simplesmente criticar o mundo religioso abstrato, superficial e impessoal que criamos ou criticar a tecnologia moderna que, sem dúvida, pode e tem nos ajudado. Minha preocupação é com o coração cada vez mais distante, mais abstrato, mais centralizado naquilo que não é Deus, mais dependente das propagandas e estímulos religiosos, mais interessado no consumo espiritual do que numa relação pessoal com Deus.
Como disse, o ateu hoje não é mais aquele que não crê, mas aquele que não encontra relevância para Deus na sua rotina, não precisa da comunhão dEle para a vida. A sutileza do novo ateísmo é que ele não precisa negar a fé, apenas cria substitutos para ela. Mantém o crente na igreja, mas longe do seu Salvador. Este ateu está muito mais presente entre nós do que imaginamos.
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