terça-feira, 25 de novembro de 2008
SERVIR: PRIVILÉGIO DE POUCOS- POR ED RENE KIVITZ
É natural ao coração humano a busca de conforto, status, poder e tudo quanto vem agregado a estas realidades. Tiago, João e sua mãe foram até Jesus solicitar tais privilégios na consumação do reino de Deus. Jesus não disse nem que sim, nem que não, mas aproveitou para reforçar que o reino de Deus é reino de servos e, portanto, os servos são os verdadeiros governantes do mundo. No reino de Deus, o privilégio e o ônus de governar não é das “pessoas importantes”, mas dos servos, até porque, governar é servir. No reino de Deus, a maneira de governar não é exercendo domínio sobre os governados, mas servindo os governados, até porque, governar é servir. Na lógica do reino de Deus, o oposto também é verdadeiro: servir é governar. Para servir é necessário sair da zona de conforto, isto é, fazer o indesejado, dedicar tempo para tarefas pouco atraentes, assumir responsabilidades desprezadas pela maioria, fazer “o trabalho sujo”, enfim fazer o que ninguém gosta de fazer. Para servir é necessário vencer o orgulho, isto é, se dispor a ser tratado como escravo, ter os direitos negligenciados, ser desprestigiado, sofrer injustiças, conviver com quase nenhum reconhecimento, enfim, não se deixar diminuir pela maneira como as pessoas tratam os que consideram em posição inferior. Para servir é necessário abrir mão dos próprios interesses, isto é, pensar no outro em primeiro lugar, ocupar-se mais em dar do que em receber, calar primeiro, perdoar sempre, sempre pedir perdão, enfim, fazer o possível para que os outros sejam beneficiados ainda que ás custas de prejuízos e danos pessoais. Não é por menos que em qualquer sociedade humana existem mais clientes do que servos. Servir não é privilégio de muitos. Servir é para gente grande. Servir é para gente que conhece a si mesma, e está segura de sua identidade, a tal ponto que nada nem ninguém o diminui. Servir é para gente que conhece o coração das gentes, de tal maneira que nada nem ninguém causa decepção suficiente para que o serviço seja abandonado. Servir é para quem conhece o amor, de tal maneira que desconhece preço elevado demais para que possa continuar servindo. Servir é para quem conhece o fim a que se pode chegar servindo e amando, de tal maneira que não é motivado pelo reconhecimento, a gratidão ou a recompensa, mas pelo próprio privilégio de servir. Servir é para gente parecida com Jesus. Servir é para muito pouca gente. A comunidade cristã – a Igreja, pode e deve ser vista, portanto, como uma escola de servos. Uma escola onde aprendemos que somos portadores do dna de Deus, dignidade que ninguém nos pode tirar. Uma escola onde aprendemos que, por mais desfigurado que esteja, todo ser humano carrega a imagem de Deus. Uma escola onde aprendemos a amar, e descobrimos que, se “não existe amor sem dor”, jamais se ama em vão. Uma escola onde aprendemos que “mais bem aventurada coisa é dar do que receber”. Servir é mesmo privilégio de poucos. De minha parte, preferiria ser servido. Mas aí teria de abrir de mão do reino de Deus. Teria de abrir mão de desfrutar do melhor de mim mesmo. Teria de abrir mão de você. Definitivamente, me custaria muito caro. Nesse caso, continuo na escola.
segunda-feira, 24 de novembro de 2008
A BÍBLIA É UMA BABEL- POR ELIENAI CABRAL JÚNIOR
A Bíblia não pode estar acima da vida. A maior autoridade na vida é a vivência mesma e não o texto sagrado da religião. O que contraria um pilar da tradição evangélica. Proponho inverter a afirmação tradicional. A vida é a maior autoridade sobre a Bíblia.
A hermenêutica evangélica da Bíblia hierarquiza o texto sagrado dividindo-o em patamares de estilo e valor: o texto normativo e o narrativo. Por ser uma escrita escorregadia, marcada pelas singularidades e obscuridades das experiências humanas, o texto narrativo precisa ser iluminado pelo texto normativo, aquele que discorre sobre Deus e doutrina a vida do crente. Sendo assim, grande parte dos evangelhos e do Livro dos Atos dos Apóstolos careceria ser interpretada com o auxílio preciso das Cartas Apostólicas. Também se sujeitariam a estes os poéticos e apocalípticos. Afinal de contas, o que fazer com o sorteio que define a vontade de Deus para a substituição no colégio apostólico, ou com a quantidade exorbitante de vinho providenciada pelo festeiro Nazareno transformando água em vinho? Os narrativos escandalizam, os normativos devolvem a ordem.
Esta compreensão hierarquizada da Bíblia já é uma “ginástica” conceitual para administrar a violência imposta à vida humana ao submetê-la a uma autoridade carente de dinamismo, à força fria do que está escrito. Os textos narrativos, maioria sugestiva da Bíblia, são repletos de ambigüidades, contradições, tensões, becos sem saída e imprecisões, porque são o retrato da vida de homens e mulheres que experimentaram Deus em épocas e culturas próprias. Da mesma forma que o discurso religioso quer sujeitar a vida ao texto bíblico, sua hermenêutica obriga-se a calar a polifonia irresistível dos textos narrativos com a mordaça dos chamados textos normativos.
Como se já não bastasse a hercúlea tarefa de arranjar a “Bíblia” de forma a maquiar suas imprecisões textuais e sua distância cultural em relação ao leitor, impõe-se ao crente arranjar sua vida de forma a encaixá-la na moldura das Escrituras, ou pelo menos dar esta impressão. Entenda o enquadramento da vida pelas Escrituras pelo que delas se compreende e se institui como fiel interpretação. Assunto com que já nos ocupamos em textos anteriores a este.
Acredito que precisamos ampliar o alcance da doutrina cristã da encarnação. O Deus que se fez gente deveria ser a mais importante chave de compreensão da Bíblia. Sendo assim, podemos entender o gesto de se esvaziar da condição acima da vida para assumir a condição humana de viver como a rendição de Deus à única realidade em que o que diz à humanidade pode fazer sentido, na vivência.
A Palavra de Deus se enche de sentido no Verbo Encarnado. O Verbo Vivo não mata a vida para se impor como doutrina. “O ladrão vem para roubar, matar e destruir”. Doutrina que não se vivencia assalta a vida. Mas a Palavra encarnada é a que vivencia radicalmente a existência humana e nela promove a vida intensamente. (Jo 10.10) O movimento divino de encarnação é um ato libertador. É negação de qualquer fala que se desconectou da vida para a sua afirmação redentora. Antes de dizer, desdizer.
Talvez por isso Jesus tenha usado com freqüência as locuções “Ouvistes o que foi dito aos antigos (…) eu, porém, vos digo que (…)” (Mt 5.22-44) Um Deus encarnado precisa dizer de novo. Reinterpretar o que sempre disse, pois fala de dentro da dinâmica existencial dos viventes. Fala com cheiro, com timbre, com cara, com batimentos cardíacos, com cultura e história, é a Raiz de Jessé, o Filho de Davi. Judeu nazareno oprimido pelos romanos. É provavelmente carpinteiro, certamente pobre. É filho de Maria, primo de João Batista. É “comilão e beberrão”. É rabi. É o filho do homem. É gente. Tem que desdizer e dizer de novo.
Acredito que foi por isso que Jesus suspendeu a prática do jejum em determinado momento, rito previsto e normatizado na Lei, negando qualquer sentido ao jejum na “presença do noivo” Como também colocou o Sábado a serviço da vida humana e a libertou de seu senhorio desastroso: o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. A vida é sagrada e não o mandamento do sábado. A Bíblia foi feita a partir da vida humana e não a vida humana a partir da Bíblia. A Bíblia sagra-se na vida.
Jesus re-significou a lei diante da mulher flagrada em adultério. A célebre pergunta “quem não tiver pecado atire a primeira pedra” seguida do perdão nada mais foi que a vida legislando sobre a Lei. Silenciou a opressão da palavra que acusa e condena e deu voz ao perdão e à esperança. Jesus é a vida se impondo sobre a letra. Mulher, onde estão os teus acusadores? Ninguém te condenou? Tão pouco eu te condeno. Vá e abandone a vida de pecado.”
A grande pressão sofrida por Jesus, sua maior tentação, foi a de inverter a relação. Violentar a vida impondo sobre ela as regras vindas do alto. Ao que respondeu com uma metáfora. “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto”. (Jo 12.24) Mesmo diante da morte previsível, Jesus se nega a jogar com outras regras que não as da vida. As únicas que poderiam produzir muito fruto. Regras acima da vida fariam a palavra de Jesus uma palavra solitária, sem sentido. A palavra encarnada na vida, inclusive na possibilidade previsível da morte, é solidária, é comunhão, são muitos frutos, tem muito sentido. O mundo é reconciliado com Deus apenas na palavra que frutifica no solo da existência humana.
É por isso que o pregador que vocifera promessas de milagre precisa deixar o púlpito e freqüentar os quartos de hospitais onde esperam pelo último suspiro centenas de enfermos. Gente que nunca experimentará a tal “fé” que produz milagres. Pela mesma razão lamento a dor, mas celebro a oportunidade de ter a companhia de pastores que experimentaram o fim do casamento. Eles sim têm o que dizer sobre a interpretação de textos bíblicos a respeito do divórcio e novo casamento. Festejo a globalização e o acesso em tempo real aos fatos do mundo, pois enquanto reclamamos de Deus um jeitinho para os nossos mínimos problemas somos também constrangidos pelos campos de refugiados em Darfur.
Não tenho dúvida de que essa necessidade de alçar o texto bíblico acima do mundo vivido é uma manobra de perpetuação de poder, ou seja, da religião instituída. Apenas a instituição teme a leveza da vida humana, sua imprevisibilidade a ameaça, seu descontrole a esvazia, sua circunstancialidade a relativiza. Por isso o texto precisa emoldurar a vida humana e confirmar a relevância da religião organizada. Não consigo parar de repetir que a Bíblia que se posiciona acima da vida é sempre a imposição de uma interpretação dela e nunca ela mesma.
A Bíblia em si mesma é a sabotagem divina à sistematização dos amantes do poder. A Bíblia é Babel. A confusão de línguas e histórias impedindo a divinização dos edifícios. Babel é a vida liberta por Deus das amarras hegemônicas dos poderosos. A Bíblia é Deus confundindo os esforços cartesianos de aprisionamento da verdade. A Bíblia é Deus libertando a vida das razões absolutizantes. A Bíblia é Deus babelizando os poderosos e espalhando a verdade por tantos viventes quantos haja. A Bíblia é tão narrativa quanto à vida. E tão desorganizada, imprevisível, imprecisa, surpreendente e contraditória quanto a vida de qualquer um de nós.
E é justamente porque a Bíblia se parece muito com a vida humana que tem muito e sempre o que dizer à humanidade. Sendo um livro essencialmente narrativo é Deus falando enquanto vivemos.
Gadamer fala da compreensão como um jogo. Um jogo dialógico e dinâmico. Como em um jogo, só se compreende bem algo, suas regras e funcionamento, a medida que é vivenciado. Aprendemos um jogo não quando lemos suas regras, mas quando o jogamos. Aí sua dinâmica é apreendida. Ninguém aprende a jogar a partir de uma manual de regras, mas a partir do jogo mesmo. Porque um jogo é muito mais que as regras de seu funcionamento. É intuição. Discernimento. Interpretação. Improviso. Imaginação. Só então as regras do jogo fazem algum sentido.
A Palavra de Deus também. Enquanto vivemos, a Bíblia pode ser compreendida na dinâmica do que experimentamos. O que diz só faz sentido a partir do que vivenciamos. O que acreditamos dizer a Bíblia como Palavra de Deus é apenas o que faz sentido na vida que experimentamos aqui e agora. O que cai no solo da existência humana e frutifica. O que promove e afirma a vida humana. “A letra mata, mas o Espírito vivifica”.
Para a vida humana, com tantas vozes e imprevisível, uma Bíblia tão falante e tão surpreendente.
A hermenêutica evangélica da Bíblia hierarquiza o texto sagrado dividindo-o em patamares de estilo e valor: o texto normativo e o narrativo. Por ser uma escrita escorregadia, marcada pelas singularidades e obscuridades das experiências humanas, o texto narrativo precisa ser iluminado pelo texto normativo, aquele que discorre sobre Deus e doutrina a vida do crente. Sendo assim, grande parte dos evangelhos e do Livro dos Atos dos Apóstolos careceria ser interpretada com o auxílio preciso das Cartas Apostólicas. Também se sujeitariam a estes os poéticos e apocalípticos. Afinal de contas, o que fazer com o sorteio que define a vontade de Deus para a substituição no colégio apostólico, ou com a quantidade exorbitante de vinho providenciada pelo festeiro Nazareno transformando água em vinho? Os narrativos escandalizam, os normativos devolvem a ordem.
Esta compreensão hierarquizada da Bíblia já é uma “ginástica” conceitual para administrar a violência imposta à vida humana ao submetê-la a uma autoridade carente de dinamismo, à força fria do que está escrito. Os textos narrativos, maioria sugestiva da Bíblia, são repletos de ambigüidades, contradições, tensões, becos sem saída e imprecisões, porque são o retrato da vida de homens e mulheres que experimentaram Deus em épocas e culturas próprias. Da mesma forma que o discurso religioso quer sujeitar a vida ao texto bíblico, sua hermenêutica obriga-se a calar a polifonia irresistível dos textos narrativos com a mordaça dos chamados textos normativos.
Como se já não bastasse a hercúlea tarefa de arranjar a “Bíblia” de forma a maquiar suas imprecisões textuais e sua distância cultural em relação ao leitor, impõe-se ao crente arranjar sua vida de forma a encaixá-la na moldura das Escrituras, ou pelo menos dar esta impressão. Entenda o enquadramento da vida pelas Escrituras pelo que delas se compreende e se institui como fiel interpretação. Assunto com que já nos ocupamos em textos anteriores a este.
Acredito que precisamos ampliar o alcance da doutrina cristã da encarnação. O Deus que se fez gente deveria ser a mais importante chave de compreensão da Bíblia. Sendo assim, podemos entender o gesto de se esvaziar da condição acima da vida para assumir a condição humana de viver como a rendição de Deus à única realidade em que o que diz à humanidade pode fazer sentido, na vivência.
A Palavra de Deus se enche de sentido no Verbo Encarnado. O Verbo Vivo não mata a vida para se impor como doutrina. “O ladrão vem para roubar, matar e destruir”. Doutrina que não se vivencia assalta a vida. Mas a Palavra encarnada é a que vivencia radicalmente a existência humana e nela promove a vida intensamente. (Jo 10.10) O movimento divino de encarnação é um ato libertador. É negação de qualquer fala que se desconectou da vida para a sua afirmação redentora. Antes de dizer, desdizer.
Talvez por isso Jesus tenha usado com freqüência as locuções “Ouvistes o que foi dito aos antigos (…) eu, porém, vos digo que (…)” (Mt 5.22-44) Um Deus encarnado precisa dizer de novo. Reinterpretar o que sempre disse, pois fala de dentro da dinâmica existencial dos viventes. Fala com cheiro, com timbre, com cara, com batimentos cardíacos, com cultura e história, é a Raiz de Jessé, o Filho de Davi. Judeu nazareno oprimido pelos romanos. É provavelmente carpinteiro, certamente pobre. É filho de Maria, primo de João Batista. É “comilão e beberrão”. É rabi. É o filho do homem. É gente. Tem que desdizer e dizer de novo.
Acredito que foi por isso que Jesus suspendeu a prática do jejum em determinado momento, rito previsto e normatizado na Lei, negando qualquer sentido ao jejum na “presença do noivo” Como também colocou o Sábado a serviço da vida humana e a libertou de seu senhorio desastroso: o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. A vida é sagrada e não o mandamento do sábado. A Bíblia foi feita a partir da vida humana e não a vida humana a partir da Bíblia. A Bíblia sagra-se na vida.
Jesus re-significou a lei diante da mulher flagrada em adultério. A célebre pergunta “quem não tiver pecado atire a primeira pedra” seguida do perdão nada mais foi que a vida legislando sobre a Lei. Silenciou a opressão da palavra que acusa e condena e deu voz ao perdão e à esperança. Jesus é a vida se impondo sobre a letra. Mulher, onde estão os teus acusadores? Ninguém te condenou? Tão pouco eu te condeno. Vá e abandone a vida de pecado.”
A grande pressão sofrida por Jesus, sua maior tentação, foi a de inverter a relação. Violentar a vida impondo sobre ela as regras vindas do alto. Ao que respondeu com uma metáfora. “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto”. (Jo 12.24) Mesmo diante da morte previsível, Jesus se nega a jogar com outras regras que não as da vida. As únicas que poderiam produzir muito fruto. Regras acima da vida fariam a palavra de Jesus uma palavra solitária, sem sentido. A palavra encarnada na vida, inclusive na possibilidade previsível da morte, é solidária, é comunhão, são muitos frutos, tem muito sentido. O mundo é reconciliado com Deus apenas na palavra que frutifica no solo da existência humana.
É por isso que o pregador que vocifera promessas de milagre precisa deixar o púlpito e freqüentar os quartos de hospitais onde esperam pelo último suspiro centenas de enfermos. Gente que nunca experimentará a tal “fé” que produz milagres. Pela mesma razão lamento a dor, mas celebro a oportunidade de ter a companhia de pastores que experimentaram o fim do casamento. Eles sim têm o que dizer sobre a interpretação de textos bíblicos a respeito do divórcio e novo casamento. Festejo a globalização e o acesso em tempo real aos fatos do mundo, pois enquanto reclamamos de Deus um jeitinho para os nossos mínimos problemas somos também constrangidos pelos campos de refugiados em Darfur.
Não tenho dúvida de que essa necessidade de alçar o texto bíblico acima do mundo vivido é uma manobra de perpetuação de poder, ou seja, da religião instituída. Apenas a instituição teme a leveza da vida humana, sua imprevisibilidade a ameaça, seu descontrole a esvazia, sua circunstancialidade a relativiza. Por isso o texto precisa emoldurar a vida humana e confirmar a relevância da religião organizada. Não consigo parar de repetir que a Bíblia que se posiciona acima da vida é sempre a imposição de uma interpretação dela e nunca ela mesma.
A Bíblia em si mesma é a sabotagem divina à sistematização dos amantes do poder. A Bíblia é Babel. A confusão de línguas e histórias impedindo a divinização dos edifícios. Babel é a vida liberta por Deus das amarras hegemônicas dos poderosos. A Bíblia é Deus confundindo os esforços cartesianos de aprisionamento da verdade. A Bíblia é Deus libertando a vida das razões absolutizantes. A Bíblia é Deus babelizando os poderosos e espalhando a verdade por tantos viventes quantos haja. A Bíblia é tão narrativa quanto à vida. E tão desorganizada, imprevisível, imprecisa, surpreendente e contraditória quanto a vida de qualquer um de nós.
E é justamente porque a Bíblia se parece muito com a vida humana que tem muito e sempre o que dizer à humanidade. Sendo um livro essencialmente narrativo é Deus falando enquanto vivemos.
Gadamer fala da compreensão como um jogo. Um jogo dialógico e dinâmico. Como em um jogo, só se compreende bem algo, suas regras e funcionamento, a medida que é vivenciado. Aprendemos um jogo não quando lemos suas regras, mas quando o jogamos. Aí sua dinâmica é apreendida. Ninguém aprende a jogar a partir de uma manual de regras, mas a partir do jogo mesmo. Porque um jogo é muito mais que as regras de seu funcionamento. É intuição. Discernimento. Interpretação. Improviso. Imaginação. Só então as regras do jogo fazem algum sentido.
A Palavra de Deus também. Enquanto vivemos, a Bíblia pode ser compreendida na dinâmica do que experimentamos. O que diz só faz sentido a partir do que vivenciamos. O que acreditamos dizer a Bíblia como Palavra de Deus é apenas o que faz sentido na vida que experimentamos aqui e agora. O que cai no solo da existência humana e frutifica. O que promove e afirma a vida humana. “A letra mata, mas o Espírito vivifica”.
Para a vida humana, com tantas vozes e imprevisível, uma Bíblia tão falante e tão surpreendente.
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